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Passo a passo da Latitude 70 na Rússia

Histórias e momentos

Atingir a Latitude 70 na Rússia teve um gostinho muito especial.

Nós já sabíamos que não seria fácil, pois estaríamos em um dos lugares mais inóspitos do planeta, enfrentando temperaturas extremamente baixas. A razão de estarmos aqui no frio é que o inverno é a única estação do ano possível de se dirigir para o extremo norte, pois o percurso acontece sobre as “Zimnik” (estradas de inverno), estradas que se formam quando os rios e lagos estão congelados.

Mas a partir do momento que começamos a contar ao povo local sobre nosso objetivo da Latitude 70, passamos a ser desencorajados, tanto por estarmos em um carro apenas, como por este carro não ser adequado. As estradas de inverno na Rússia são comumente utilizadas por comboios de caminhões 4×4 ou 6×6, com pneus gigantes, que deixam valetas muito profundas quando neva, o que, segundo o locais, seria impossível de enfrentarmos com nosso Land Rover com pneus de tamanho original. Além desse fato, em temperaturas abaixo de -40 graus Celsius, se ocorre algum problema com seu carro ou com o aquecimento dele, a temperatura externa iguala a interna em poucas horas. Um momento pode estar tudo bem e noutro virar um pesadelo. E a nossa exposição a esse frio seria por um longo período, pois Pevek, que fica na Latitude 70, está a 2.200km da estrada principal. Somado a volta seriam 4.400km, que na velocidade média dessas estradas (+/- 20km/h), estaríamos falando em 220 horas, ou seja, 22 dias se dirigíssemos 10 horas por dia.

Nós não tiramos a razão dos russos que nos deram esses conselhos, de que as Zimnik definitivamente não seriam para nós. Eles são experientes e só estavam pensando em nossa segurança. Mas vendo por outro lado, o que seria do Amyr Klink se ele tivesse dado ouvidos a todos os que o aconselharam a não remar o Atlântico sozinho?

Nós titubeamos, temos que confessar. Pernoitamos na bifurcação entre a Estrada dos Ossos e a Zimnik que nos levaria a Pevek e naquela noite colocamos no papel todos os pros e contras do desafio. O resultado? Equilíbrio, que tornou a decisão ainda mais difícil. Resolvemos então dar a nós mesmos mais alguns dias para pensar no assunto e nesse meio tempo, dirigimos até Magadan, que fica no final da Estrada dos Ossos.

Mas o que é para ser, será! Nós estávamos muito perturbados com a hipótese de que voltaríamos para casa sem a Latitude 70 da Rússia. Foi então que em Susuman, quando voltávamos de Magadan, pelas 20h, um russo chamado Konstantin bateu em nossa porta e nos ofereceu uma caixa de comida! Saímos do carro para agradecer e bater um papo e descobrimos que ele estava em uma viagem pela Rússia com um Toyota Land Cruiser. Um de seus objetivos era ir a Tiksi, que assim como Pevek, fica no extremo norte da Rússia. Konstantin nos convidou para irmos juntos para lá, o que seria uma ótima alternativa para ambos os lados, pois um poderia dar suporte e a segurança ao outro. O inconveniente é que teríamos que espera-lo cerca de cinco dias, já que ele viajaria a Magadan primeiro.

Desistir da Latitude 70 sem dar a ela pelo menos uma chance? Nem pensar. Noutro dia mesmo enviamos um e-mail a Konstantin informando-o que iríamos espera-lo e que viajaríamos juntos para o norte.

Nossa investida a Latitude 70 começou em Tyoply Klyuch (ainda na Rodovia dos Ossos), onde abastecemos o máximo de diesel que podíamos. Haveriam vilas ao norte para reabastecimento, mas o inconveniente de se viajar pelas Zimnik é que as baixas médias aumentam o consumo, o carro não pode ser desligado em nenhum momento e o aquecimento dos carros também funcionam a diesel. Isso tudo é igual a 5km/L.

Começamos por uma estrada razoável até Topolinoe. Lá demos carona a um nativo even, chamado Vladimir, que 30km ao norte, dirigindo pelo primeiro rio congelado, o Delenni, nos convidou para um chá em sua barraca no meio da floresta de taiga. Ele é um pastor de renas, que além de tirar sustento de sua criação, vive da caça e pesca, em total sinergia com a natureza. Enquanto ainda fechávamos nossos carros, que ficaram estacionados sobre o rio congelado, ele catou um bloco de gelo e o levou para derreter para fazer nosso chá. Ao chegarmos em sua barraca ela já estava aquecida e aconchegante. Sentamos no chão sobre couros de rena. Algumas de suas roupas, botas, luvas e outros itens também eram de couro de rena, que é um isolante natural que o protege de temperaturas de até -60°C. Tomamos um ótimo chá e ouvimos as suas histórias.

É fantástico e curioso perceber as diferenças do mundo dele com o nosso. Vladimir possuía um pequeno cercado e por debaixo da neve haviam dois veados congelados. Era o seu freezer natural. Ao lado de sua barraca haviam alguns trenós para rena e tudo feito com muito capricho.

Depois fomos para fora da barraca e Vladimir mostrou-nos seu laço de couro feito do pescoço de rena, que é cortado de forma circular e contínua para que seja comprido e não tenha emendas, e o atirou em um tronco. Ofereceu-o ao Roy para tentar sua laçada e a brincadeira começou, pois Roy participava de rodeios no passado, então laçou o tronco de primeira, mas do jeito gaúcho, o qual Vladimir se encantou e quis aprender… O rodeio terminou com Vladimir presenteando o Roy com seu laço! Pensa num piazão que saiu feliz de lá!

E voltamos para a estrada, ou melhor, para o rio, pois tínhamos muitos quilômetros pela frente, mas prometemos a Vladimir que tomaríamos um chá com ele em nossa volta da Latitude 70.

Dirigir sobre o rio congelado é uma delícia. Ele não fica como uma pista de patinação no gelo, pois se quebra com os movimentos constantes da água e gelo, criando rachaduras e buracos, mas mesmo assim conseguíamos manter uma média horária entre 50 e 60km/h. A neve que cai sobre o rio vai sendo compactada pelos próprios veículos, deixando a pista menos escorregadia, mas menos macia. Íamos constantemente margeando os paredões da encosta do rio e o visual era surreal. Dos 2.400km que fizemos de ida e volta (sim, porque esta estrada que leva a Tiksi, diferentemente da que leva a Pevek, segue praticamente só ao Norte, fazendo-se mais curta), mais de 900km foram só sobre rios e lagos congelados. Mas as estradas pela taiga e tundra, que somaram 1.500km, foram de chorar. Buracos, buracos e mais buracos. Para se ter uma ideia da média horária que fizemos em algumas manhãs, partíamos pela 8h e quando era hora do almoço, malmente havíamos percorrido 50km. A noite parávamos para acampar e nos encontrávamos todos em nosso carro para a janta, mas ninguém ia muito longe tamanho o cansaço. A temperatura na segunda noite foi abaixo de -50°C, mas as outras foram mais amenas, entre -35 e -45°C. Cruzamos um passe a 966m ao nível do mar e descemos por um córrego com muitas pedras, buracos e após muitas horas andando em primeira ou segunda marcha, chegamos em mais um rio bom para dirigir, chamado Nel’gese.

Aos trancos e barrancos fomos progredindo na latitude até cruzarmos a linha do Círculo Polar Ártico, a 66° 33’. Não havia qualquer placa que indicasse esse marco, então o desenhamos na neve, o cruzamos e comemoramos. Depois veio Batagay, uma cidade literalmente isolada do mundo. Para seus moradores saírem de lá de carro, só é possível no inverno e pode considerar três dias pelo mínimo para chegar na estrada principal. No verão o acesso é de avião ou barco, mas o primeiro é caro e o segundo demorado. Assim como é difícil para os moradores de Batagay entenderem o que nós estávamos fazendo lá, para nós foi difícil entender o que essa cidade faz ali. A única explicação cabível é a riqueza de minério na região.

Mas Batagay estava a apenas 67° 39’ N. Tínhamos mais 2° 21’ para subir em um percurso muito lento. É irônico, mas podemos dizer que para avançarmos 60 minutos em latitude, levávamos dez horas.

Ao norte de Batagay entramos no rio Yana, mas boa parte do trajeto dirigimos pela taiga e tundra, pois haviam trechos do rio com água sobre o gelo, algo comum acontecer mesmo no pico do inverno e há perigo do gelo se partir. Nós flagramos 6 caminhões, de 6 caminhoneiros infelizes, que caíram nesta armadilha da natureza. Para eles, que trabalham com transporte apenas no inverno, que é a estação onde há estradas (zimnik), sua temporada havia se encerrado, pois o processo de se tirar um caminhão daquela situação leva pelo mínimo 2 meses. No futuro queremos fazer um post sobre esse assunto para podermos detalhar melhor o processo de se tirar um caminhão de uma enrascada dessas!

E aí, faltando apenas 40km para nosso grande e tão sonhado objetivo, puf, puf, puf e aquele silêncio terrível da natureza novamente, onde não se houve o motor funcionando! Parece até que alguém estava nos testando para ver se estávamos ou não preparados para o troféu da Latitude 70. O diesel ruim entupiu pela segunda vez no filtro de combustível e o carro parou. Nós não perdemos tempo e agimos da forma que aprendemos da primeira vez, coisa que só sendo Landeiro se aprende, pois geralmente essas coisas só acontecem nas Land, hehehe. A Michelle correu para o fogão para ferver água para a bolsa de água quente e o Roy foi bombear manualmente a bomba de diesel. Adicionamos aditivo no tanque, fizemos uma compressa de água quente na bomba de combustível e aos poucos o sistema manual de bombeamento de diesel foi aliviando e esse foi o sinal de que o diesel voltou a fluir para o carro funcionar normalmente. Um processo de 20 minutos, mas que deu um susto danado.

Então nada nos segurava mais – foram 40km até a cidade de Ust-Kuyga e ali, sobre o rio mesmo, cruzamos a linha da Latitude 70 pela segunda vez nesta viagem, ou melhor, em nossas vidas. Foi uma alegria difícil de esconder. E teve troféu? Sim, um pedaço de uma caixa de papelão onde a Michelle escreveu com todo o capricho nossa latitude máxima na Rússia – 70° 00’ 44’’ N. A noite, pelas 22h, fomos presenteados com uma linda Aurora Boreal que despontou por detrás das montanhas de Ust-Kuyga. O resumo da conquista, como já escrevemos quando chegamos na primeira Latitude 70 no Alasca: não é a Latitude em si que importa, mas os acontecimentos que nos sujeitamos no caminho até ela. Tudo isso só aconteceu por termos, desde casa, quando planejávamos esta viagem, definido objetivos. Teria sido muito mais fácil termos permanecido na estrada principal, mas e as histórias???

Tiksi ficava ainda mais ao norte, porem nem nós e nem o Konstantin estávamos legalmente autorizados a seguir em frente, pois para se visitar o território russo que margeia em 100km o Mar do Ártico, é preciso ter uma autorização especial, caso contrário, cadeia. Nós até tínhamos uma autorização que tivemos que fazer com 60 dias de antecedência, mas valia apenas para Pevek, que fica no estado vizinho de Chukotka.

Ver o Mar do Ártico não está fácil, mas não vamos desistir. Nossa chance em vê-lo ficou agora para a terceira Latitude 70, que ocorrerá no Nordkapp, Noruega, na sequência de nossa viagem.

Naquela noite sobre o Rio Yana, quando jantávamos, nos vimos diante de uma pergunta: “e agora, voltamos?” “Sim! Mas serão 6 dias de deslocamento mais tranquilos. Agora já sabemos onde estão os buracos, rsrsrs.”

Mas não foi bem assim. Na volta, pelos amortecedores traseiros terem se danificado internamente devido ao intenso frio, em alguma pancada forte onde os mesmos se abriram até o limite, quebrou os suportes de ambos. Até conseguimos fazer outros em Batagay numa torno-mecânica, mas um voltou a quebrar próximo a Topolinoe.

Na volta fizemos um desvio para conhecer Verkhoyansk, que junto a Oymyakon, formam o Polo do Frio, ou seja, as duas cidades do mundo que registraram as temperaturas mais baixas na história. Em Verkhoyansk registrou-se o recorde de -67,8 °C.

Nossa volta foi lenta como a ida, mas foi celebrada quando vimos Vladimir acenando-nos em frente a sua barraca com um pano colorido. Ficamos felizes por vê-lo novamente, pois é uma pessoa muito especial e também, sabíamos que nos faltavam apenas 30km para Topolinoe, onde a estrada iria melhorar. Logo que o cumprimentamos ele nos levou para ver suas renas. Pudemos chegar tão perto delas, que comeram sal em nossas mãos. A noite a janta foi em nosso carro e pela manhã, para retribuir nosso gesto, além de nos dar a oportunidade de montar numa rena, Vladimir preparou uma sopa de carne de rena que foi de lamber os beiços. Deliciosa!!! Quanto ao jeito gaúcho de laço que Vladimir aprendeu conosco em nossa primeira passagem por ali, nos contou que tentou essa técnica nas renas, mas falhou, pois quando girou o laço, espantou as renas de primeira. A forma even de laçar não se gira o laço, apenas joga-se ele de uma forma que a armada se abre em cima da rena e assim não dá tempo de ela fugir. No caso do laço gaúcho, a intenção é de laçar o boi que já está em movimento.

Foram 13 dias intensos de muita estrada ruim, mas de experiências que ficarão marcadas para o resto de nossas vidas. O frio extremo já não nos assusta mais, pelo contrário, virou sinônimo de muita aventura.

Bom, assim termina mais uma história da Latitude 70. Para nós, ao narrar este texto, bateu uma saudade tremenda…

 

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