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Diário de Bordo 11 – Peru 1

(06/11/2014 a 25/11/2014)

Um sobe e desce sem fim…

A Estrada do Pacífico, também conhecida como Interoceânica, é apenas uma das obras que o projeto de integração “Eixo Peru-Bolívia-Brasil” visa para o futuro. Haverão mais estradas, além de hidrovia e ferrovia, que visam interligar o Brasil e a Bolívia a portos peruanos, permitindo assim a expansão do comércio com a Ásia via o Oceano Pacífico. A estrada nova – finalizada  em 2010 –, parte de Assis Brasil no Acre e é uma ótima via de acesso ao país vizinho, país que tem muito a ser explorado por sua rica história, cultura e natureza. Foi por esta rodovia que entramos no Peru e dirigimos sentido a Cusco.

Os primeiros quilômetros atravessam a Amazônia peruana e nos levaram a Puerto Maldonado, uma cidade típica da floresta tropical – quente e úmida –, e que devido a grande diversidade de flora e fauna leva o título de Capital de la Biodiversidad del Perú.

Logo que chegamos na cidade cruzamos o Rio Madre de Dios, este mesmo rio que conhecemos no norte da Bolívia e que desemboca no Rio Madeira, Brasil. Demos uma volta, mas como já era fim de tarde, fomos procurar um lugar para passar a noite e uma boa alternativa foi estacionar o carro no porto popular, de onde pequenos barcos partem para a pesca e turismo local. Além da bonita vista, com aquele rio enorme a nossa frente, naquela noite vimos a lua cheia nascer espelhada em suas águas.

Puerto Maldonado, na verdade, se situa na união de dois rios. Além do Madre de Dios, há o Tambopata, pelo qual muitos barcos de turismo sobem indo atrás da vida selvagem da Amazônia. E nós, com o intuito de vivenciar um pouquinho mais dessa floresta e celebrar o aniversário de quarentão do Roy (07/11), dirigimos por uma estrada que costeia o rio Tambopata e por uma sorte do destino, chegamos num belo camping na Playa de Botafogo, onde já de cara fizemos amizade com Ronald, o proprietário, e fomos convidados para os festejos do dia de San Martim de los Porres, o primeiro santo negro da América do Sul que é padroeiro desta comunidade.

Todos ali são muito católicos e devido a comunidade de Bajo Tambopata não possuir uma igreja, a cada ano, uma família aloja em sua casa a escultura do santo. E sempre que é dia de San Martin de los Porres, um novo inquilino é escolhido e uma grande celebração é feita, com missa local seguida de muita festa. Neste ano a família de Ronald estava recebendo o santo. Claro que na festa a notícia do aniversário do Roy foi divulgada e se espalhou rapidamente, sendo que até na missa ele foi cumprimentado. Depois de muita oração para o santo, dá-lhe cerveja, conversa e música la cumbia (ritmo local), o sábado inteiro. Músicas do norte brasileiro também fizeram parte do repertório. Todos, aqui, gostam e se identificam muito com o Brasil e nossa cultura.

Ainda no início deste dia, sobrevoamos de paramotor a grande curva que o Rio Tambopata faz na região. A ideia era fazer imagens da floresta, mas sobre floresta tropical, onde o calor e a umidade são intensos, mesmo sendo 8h30 da manhã, fortes térmicas já se desprendiam e faziam o voo muito turbulento e tenso. O voo foi curto, de apenas 15 minutos, mas deu para ver e registrar, de alguma forma, a imponência da floresta amazônica peruana.

A mesma Estrada do Pacífico que nos trouxe a Puerto Maldonado, nos levou a Cusco, uma das cidades mais importantes do Peru em se tratando de história e turismo. As florestas deram lugar ao planalto, sendo que nosso passe mais alto passou de 4.200 metros de altitude e tudo mudou: temperatura, umidade, oxigênio, natureza e as pessoas, em sua fisionomia, costumes, vestimentas, comida, etc. Nos falou um cidadão de Bajo Tambopata, na festa do santo, que a Rodovia Transoceânica tem um pedacinho, ou melhor, um exemplo de todos os tipos de biomas existentes no planeta. Bom, até pesquisamos sobre isso, mas não achamos nada que sustentasse sua tese. Mas a real é que entre as 3 grandes regiões do país, a floresta amazônica, o altiplano e a costa do Pacífico, pode-se identificar a cada instante uma natureza diferente.

Chegando em Cusco, tivemos que primeiramente fazer uma visita a um mecânico, só para não perder o costume. Não sabemos ao certo a causa, mas a caixa de transferência encavalou em suas engrenagens, impossibilitando que engatássemos a marcha reduzida. Pela terceira vez nesta viagem baixamos a caixa de transferência para manutenção. Foi azar por termos tido mais um problema nesta caixa, mas sorte por não termos precisado trocar nenhuma peça, pois o Peru praticamente não possui Land Rovers, o que dificulta achar peças de reposição.

Nós já estivemos em Cusco em outras oportunidades, bem como já havíamos feito a caminhada inca que vai a Machu Picchu. Então, dessa vez, nossas energias estavam guardadas para conhecermos outros lugares de grande interesse arqueológico da era inca. E quando iríamos imaginar que ainda existiria tanta coisa pra se ver e de tanta beleza? Estamos falando do Vale Sagrado, onde conhecemos Pisac, Ollantaytambo, Moray e Chinchero.

A começar pelo visual, ao vermos o Rio Urubamba correndo entre o vale, um lugar lindíssimo, de indescritível grandeza. Quando parávamos o carro para fotografar, as vezes até para fazer um cafezinho e assim poder contemplar melhor as montanhas, ficávamos imaginando como era na época inca, quando não existiam mobilidades como as atuais. Como eles faziam para se locomover por entre aquelas montanhas? Ou pior, como faziam para transportar pedras de mais de 300 toneladas morro acima para fazer suas construções? Vejam, a indignação é tamanha, pois o império inca não esteve em alta por nem dois séculos! Como esta civilização conseguiu tantos feitos, sem ao menos ter a tecnologia da roda? Nesse ponto, as vezes, ficamos pensando: será que a tecnologia não faz com que nós, como pessoas, retrocedamos? Havia um imperador inca que saía do Peru e ia até a Bolívia, nas proximidades do vulcão Sajama, somente para se banhar em águas termais. Caminhando!!! Mais tarde, nesse diário, verão com mais detalhes que nós, para percorrer de carro parte deste país, levamos 7 dias. Imagina fazer isso a pé?!

Pisac está situada na Cordilheira Vilcabamba, a apenas 33km de Cusco. Este sítio arqueológico se constitui como um dos monumentos mais bonitos do vale, pois combina a natureza das altas montanhas com as impecáveis construções incas e seus terraços de agricultura. Estudos indicam que Pisac foi uma fazenda real do inca Pachacutec e as construções incluem espaços domésticos, cerimoniais e de observação astronômica. Nós caminhamos horas pela montanha, conhecendo as diversas construções e templos e confessamos, devido ao sobe e desce, que nossas pernas já estavam bambas. Lindo demais este lugar.

De Pisac, dirigindo pelo Vale Sagrado e seguindo o curso do Rio Urubamba, fomos a Ollantaytambo, a cidade onde normalmente se pega o trem para ir a Machu Picchu. No caminho cruzamos por restaurantes a beira de estrada que vendiam cuy assado no espeto. Para quem não conhece, é uma espécie de porquinho da índia comumente encontrado nos menus de restaurantes do todo o Peru. Nós ainda não tivemos a oportunidade de experimenta-lo, mas não queremos deixar o país sem esta chance.

Nas outras vezes que passamos por Ollantaytambo rumo a Machu Picchu, temos que dizer a verdade, não demos muita importância ao lugar. Que inocência nossa! Ollantaytambo possui uma das ruínas mais incríveis que já vimos. Há pedras esculpidas nesse local que são tão grandes, mas tão grandes, que passaríamos o resto de nossas vidas tentando decifrar como os incas as trouxeram até aquele ponto alto da montanha. Diz-se que eles as buscavam de um lugar a 6km de distância dali e que para cruzar o rio com essas pedras gigantes, mudavam o curso dele. Imaginem: traz-se a pedra até uma margem, muda-se o curso do rio e com isso, sem mexer a pedra, ela passa a estar na outra margem.

Ollantaytambo possui as ruínas da parte alta – centro cerimonial de purificação e culto a água – e da baixa, que é a cidade propriamente dita, aliás, muito bem conservada. A base da maioria dos edifícios correspondem aos traços originais da época inca. Suas ruelas de pedra são surpreendentes, onde ainda há canais para distribuir água pela cidade. Pensa-se que o local era um centro militar, agrícola e religioso, que controlava todo o Vale Sagrado. A propósito, Ollantaytambo é uma da únicas cidades em que seus moradores são descendentes diretos dos incas.

Para ir a Moray, subimos da parte baixa do vale até o alto da montanha, até a cidade de Maras, e dirigimos mais 8km. Moray é algo diferente: são terraços de agricultura que possuem uma forma linda, mas enigmática. Este sítio demonstra o profundo conhecimento agronômico que os incas possuíam. Imagina-se que, por não serem tão grandes para a produção agrícola normal, serviam como laboratório e simulavam uma série de microclimas, onde se experimentava as variedades de cultivos de forma a identificar seu melhor desempenho. Cada degrau possuía uma temperatura e por isso, ideal para cultivar alimentos diferentes.

Na região de Maras, aproveitamos para visitar uma salineira, ou seja, uma fábrica de sal. Ali corre um riacho extremamente salgado e para captar esse sal, foram construídos ao longo da encosta da montanha inúmeras piscinas, que por decantação, separam o sal. As imagens são de arrepiar!

Nosso circuito pelo Vale Sagrado se concluiu após visitarmos Chinchero, outra cidade com muitas ruínas incas, e também, com uma igreja colonial muito bonita, que fora construída em cima de muros incas. Infelizmente não era permitido fotografar as pinturas simples e hipnotizantes, além dos altares esculpidos em madeira e folhados a ouro. Caminhamos pela cidade e quando já estávamos bem cansados (tivemos que visitar esses quatro sítios arqueológicos em apenas dois dias devido a validade do tíquete), paramos para saborear um ótimo milho de gomos gigantes (choclo), servido com queijo branco e molho picante.

Ufa… que aula de história tivemos ao conhecer o Vale Sagrado!!! E fica a dica: vale muito a pena visitar essa região.

Daqui para frente, até alcançarmos nosso próximo destino planejado, foram 7 dias de estrada para cumprir um percurso de 1.650km (Cusco, Abancay, Ayacucho, Huancayo, Cerro de Pasco, Huánuco, La Union, Huari, Chacas e Carhuaz). Nós subimos e descemos 11 vezes entre altitudes de +/- 2.000m e 4.000m, sem contar as pequenas subidas e descidas de entremeios. Vejam, tomamos nota disso:

Partimos da região de Cusco que ficava a +/- 3.500m. Aí foi nessa sequência: 4.005m, 1.782m, 4.160m, 2.820m, 4.266m, 1.975m, 4.295m, 2.173m, 3.916m, 3.277m, 4.400m, 1.920m, 4.005m, 2.993m, 3.430m, 3.152m, 4.537m, 2.638m, 4.367m, 2.855m, 4.782m, 2.247m e finalmente chegamos na Cordilheira Branca, o tal destino. É mole??? Dá para imaginar a quantidade de curvas que fizemos? Se tentássemos contar, com certeza perderíamos a conta. Quanto as estradas, eram razoáveis. Muitas delas asfaltadas, mas nem todas. Nossa média horária, mesmo que em asfalto, não passava de 30km/h, pois na maioria das vezes a estrada tinha largura para apenas um carro. Os abismos eram altos, muito altos e as curvas acentuadas (muitas de 180 graus). Cometer um erro ali, nem pensar.

Referente ao trânsito no Peru, fazemos duas considerações. Uma positiva e outra negativa. A positiva é que comparando essa viagem com a que fizemos em 2007, as tentativas de propinas pelos policiais praticamente se acabaram. Para sermos sinceros, apenas um guarda pediu uma gasosa e ele nem insistiu. Parece que houve um entendimento de que o turista, para seu país, é um dos maiores ganha-pão e por isso, passaram a trata-lo com mais cuidado e atenção. O lado negativo é a educação no trânsito por parte dos peruanos. Não existe “dar a preferência”, nem para carro, pedestre ou ciclista. O trânsito aqui no Peru é uma louca briga por espaço e perder um segundo é fatal. Todo mundo quer ser o primeiro e a palavra GENTILEZA é desconhecida. Nós passamos dois apuros sérios neste trajeto, um por um carro simplesmente ter cruzado em nossa frente quando dirigíamos na rodovia… e outro, quando um caminhão vinha ultrapassando às cegas em uma ponte em curva. E desviar para onde??? Por sorte, ainda antes de entrar na ponte, conseguimos jogar o carro para fora da pista. Essa foi por um triz.

Uma curiosidade sobre Abancay, a primeira cidade que passamos nesta travessia de sobe e desce. Ela se situa a 2.400m de altitude, mas seu aeroporto municipal, que fica a apenas 30km de distância do centro da cidade, está sendo construído a 4.005m de altitude. O motivo é claro: seria humanamente impossível, se fosse feito um aeroporto na altitude da cidade, que um avião de maior porte pudesse pousar. A cidade fica literalmente num vale rodeado por montanhas muito altas.

Para se ter uma ideia melhor da Cordilheira Branca, escrevemos esses números: em uma extensão de 180km de norte a sul, existem 663 glaciares, 16 picos nevados acima dos 6.000 metros de altitude (um deles é o Huascarán, segunda maior montanha das Américas, com 6.768m) e outros 17 acima dos 5.000m. Há também 269 lagoas e 41 rios, que desembocam nos rios Santa e Marañon. Esta é a mais alta cordilheira do mundo, fora do Himalaia. Então não tem o que falar, é um lugar maravilhoso, que oferece caminhadas que estão entre as mais bonitas do mundo.

Nós já estivemos no Parque Nacional Huascarán na primeira viagem de volta ao mundo, mas queríamos ter a oportunidade de conhecer um pouquinho mais deste lugar, onde há tanto para se ver. Já de cara chegamos por seu lado oposto, fazendo-nos ter que cruza-lo de leste a oeste, o que nos rendeu a maior altitude que estivemos com nosso carro nesta viagem – 4.782m. Nesta passagem nós dirigimos ao lado do Huascarán, que apesar de estar com seu pico meio encoberto, demonstrava sua magnitude e impunha respeito. E para celebrarmos os 100 dias na estrada, fizemos um passeio ao esverdeado Lago Parón, que se situa a 4.170m ao nível do mar e está entre 7 picos nevados, sendo um deles em formato piramidal. Bom, mais do que palavras, achamos que as imagens que seguem neste diário podem descrever melhor sobre esta maravilha da natureza que é a Cordilheira Branca.

No mais, nós subimos novamente até os 4.314m de altitude na Cordilheira Negra e despencamos, em apenas 80km, até o nível zero, quando vimos pela primeira vez, nesta viagem, o sol se por no mar. Mas nossas histórias aqui da beira do Pacífico ficarão para nosso próximo diário de bordo! Até lá…

 

PS – Para quem tiver curiosidade, seguem os links de nossos diário da primeira volta ao mundo, que contam um pouco mais de Cusco e da Cordilheira Branca.

Itinerário percorrido

Itinerário Peru

Fotos

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