ícone lista de índices Índice

Diário de Bordo 16 – Panamá 1

(03/02/2015 a 25/02/2015)

Uma terra sem estradas.

A rodovia Pan-americana, nos seus 48.000km de extensão, interliga o Alasca a Ushuaia. É a rodovia mais longa do mundo, porém é interrompida no famoso Estreito de Darién ou Darien Gap, em inglês. São apenas 150km sem estradas numa área de pântanos no lado colombiano e terreno montanhoso e de densas florestas no lado panamenho. Houve planos, em 1971, para construção de uma rodovia no estreito, que foram abortados devido a protestos de ambientalistas. Mais uma tentativa teve início em 1992, mas novamente, pelas mesmas questões, foi deixada de lado. Muitas pessoas, grupos ambientalistas, indígenas e governos são contra a construção do trecho faltante e algumas das razões são: proteger a floresta; previnir a expansão da febre aftosa para terras da América Central e do Norte, que há muitos anos estão livres da doença; proteger as culturas indígenas que podem ser ameaçadas com o desenvolvimento e dificultar o tráfego de drogas. Nós acreditamos, também, haver alguma pressão por parte dos Americanos que teriam seu território mais facilmente acessível aos sul-americanos, se existisse uma passagem por terra.

Por haver esta interrupção, qualquer viajante que deseja cruzar da América do Sul para a América Central necessita transportar seu carro em um barco. Anos atrás havia um ferry que que fazia este serviço entre a Colômbia e o Panamá, mas este não ficou por muito tempo e este trajeto passou a ser um desafio para os viajantes, já que a única forma era despachar o carro em um contêiner, o que é mais caro, demorado e burocrático. Mas para nossa sorte, muito recentemente, um novo ferry voltou a fazer esse trajeto e foi nele que embarcamos rumo ao Panamá.

Deixamos a costa da Colômbia de FerryXpress, nós e o Lobo, e navegamos dezoito horas até pisarmos em terras centro-americanas. Apesar de passarmos uma péssima noite devido ao intenso frio do ar-condicionado, adoramos a viagem, especialmente ao amanhecer, quando fomos presenteados com um espetáculo da natureza em alto mar – pássaros, em mergulhos ornamentais, pescavam peixes voadores, que se aglomeravam nas ondas que o ferry fazia. Alí, em mar caribenho, também recebemos a visita de golfinhos.

Atracamos no Porto de Colón 13:30h e dali saímos somente no dia seguinte. É que ficamos a mercê dos enrolados agentes portuários, que levaram até a noite para fazer os trâmites aduaneiros e de imigração. Isso que estávamos em apenas 14 carros. Ficamos imaginando se o Ferry viesse lotado em sua capacidade de carros: +/- 500! Passamos a noite no estacionamento do porto na boa companhia dos demais overlanders e confraternizamos mais uma fronteira ultrapassada.

Colón já foi uma grande cidade, mas ficou esquecida quando a Cidade do Panamá, capital do país, cresceu em importância. Sua bela arquitetura colonial em estilo francês está ruindo pela falta de cuidado e muitos prédios transformam-se em cortiços. Em 1948 foi criada a Zona Livre de Colón (zona comercial livre de impostos) como uma tentativa de reergue-la, mas ainda assim a cidade se parece abandonada. Quanto a Zona Livre, esta é a maior das Américas e segunda maior no mundo, atrás apenas de Hong Kong em volume de comércio. É interessante, pois se parecem dois mundos numa mesma cidade, o de dentro e o de fora dos portões da área da Zona Livre. O comércio ali, na verdade, é voltado para atacado, mas algumas lojas abrem excessões para turistas, então, já que havíamos sido roubados em Cartagena de Índias, aproveitamos a oportunidade para comprar um computador e um GPS.

Em poucas horas cruzamos dirigindo de Colón, no Atlântico, para a Cidade do Panamá, no Pacífico. Essa é uma curiosidade desse pequeno país: é possível tomar café da manhã no Atlântico e o café da tarde no Pacífico, ou como dizem os surfistas, surfar no mesmo dia em dois oceanos diferentes. Este estreito que se forma na América Central também é chamado de istmo.

Estivemos por duas semanas na Cidade do Panamá e estas foram dedicadas a reorganização pós-roubo. É incrível como uma ação tão rápida de bandidos pode gerar tantos transtornos e dores de cabeça. Quanto ao computador, deixá-lo funcionando com todos os programas e arquivos não foi uma tarefa fácil, muito menos rápida. Nesse período, também, aguardamos nossos novos cartões bancários que vieram do Brasil via Família Araki, que vieram visitar nossos amigos overlanders Liene e Dan (www.zanzando.com). A todos somos muito gratos pela grande ajuda prestada.

Desde Cartagena das Índias nós estávamos numa maré de azar das grandes. Nada parecia dar certo, pois além dos incômodos com o roubo, tivemos novos problemas mecânicos no Lobo e o fogão decidiu incomodar, isso fora o dólar, que exatamente num momento desses, subia, subia, subia. O jeito foi fazer uma reza forte, com direito a fumar charuto e queimar um pau-santo dentro do carro para espantar as más energias. Mas uma coisa temos que dizer: nessas duas semanas tivemos o melhor lugar do mundo para acampar. Tranquilo, seguro e gratuito. Ficava em frente a um hotel, no qual usávamos banheiros e wifi e ficava de frente para a imponente Puente de las Américas, que é a entrada do Canal do Panamá. Dali, todos os dias, ficávamos admirando os navios enormes (petrolíferos, contêiner, cruzeiros, etc) que passavam na nossa frente entrando ou saindo do canal.

O Canal do Panamá é uma das maiores obras de engenharia do mundo e realmente merece uma visita. O jeito mais fácil é ir as Eclusas de Miraflores, nas proximidades da capital. Outra opção, alguns quilômetros mais a frente, é a Eclusa de Pedro Miguel, que pode ser vista gratuitamente de um estacionamento. E, apesar do canal ser a grande atração da região, seu entorno também é interessante e de grande beleza. Dirigimos 25km até a pequena cidade de Gamboa, sempre margeando o canal, os trilhos do trem que ligam os dois oceanos e uma floresta densa muito bem preservada. Para saber mais detalhes dessa grande obra, clique aqui e veja nosso post sobre o Canal do Panamá.

O Carnaval se aproximava (aqui no Panamá essa festa também é fortemente celebrada) e os planos eram, nesses dias, cair na estrada e conhecer um pouco do leste panamenho. Mas uma surpresa desagradável (um daqueles azares que falamos anteriormente) tardou a nossa saída. A mangueira do sistema da direção hidráulica partiu e passamos a perder muito óleo. Se fosse pelos panamenhos, teríamos passado o carnaval todo por lá, pois tudo estava fechado até a quarta-feira de cinzas. Mas encontramos dois irmãos venezuelanos, José Antonio e Juan, que há 7 meses se mudaram da Venezuela para o Panamá em busca de melhores condições de trabalho. José é um mecânico caprichoso e nos ajudou a concertar o carro. O dia terminou em pizza e com dois novos amigos. Na terça-feira, finalmente, partimos rumo ao Arquipélago de San Blás.

Imagine um lugar paradisíaco = 45 dólares; imagine então pegar um barco e ir a uma ilha paradisíaca = mais 70 dólares; e desembarcar nessa areia branca com coqueiros, água cristalina e rodeada por corais = mais 12 dólares, hehehe!!! Assim foi a nosso dia na Comarca de Guna Yala, uma região que é a prova de que paraísos existem, mas que para visitá-los pode custar caro.

A Comarca de Guna Yala é a terra dos Guna, primeiro grupo indígena da América Latina a conseguir autonomia político-administrativa. Embora eles tenham contato com os brancos desde a época do descobrimento, quando Cristóvão Colombo navegava por essas águas, seus costumes ainda são bem preservados. Esse grupo indígena detém os direitos sobre um arquipélago na costa do Atlântico com 365 ilhas, das quais algumas dezenas são densamente povoadas por 32.000 Gunas, com casas de bambu, animais e pouco saneamento básico. As demais são a imagem perfeita de ilhas paradisíacas, aquelas do Caribe de nossa imaginação.

Dirigimos 35km atravessando a Cordilheira de San Blás até chegarmos ao porto de Cartí de onde pegamos um barco para a Ilha Perro Chico. Além de tudo o que descrevemos acima sobre essas pequenas ilhas, a que visitamos também possuía um barco naufragado em sua frente, onde é possível fazer snorkel e apreciar corais e diversos peixes. Passamos um dia por ali e para percorrer a tal ilha, não precisávamos de muitos passos. Ora estávamos na sombra de um coqueiro em um lado da ilha fazendo um piquenique, ora estávamos no outro lado, deitados ao sol. Mas numa dessas, dormimos e tomamos aquele torrão nas costas. O dia passou, o barco taxi nos buscou e o paraíso ficou para trás, mas um sonho permaneceu em nossa cabeça: um dia voltar para Guna Yala em um veleiro!

Continuamos viagem para o extremo leste, tendo como destino a Província de Darién. Queríamos ver de perto esse tal de Estreito de Darién que instiga a imaginação de aventureiros como nós. Nosso objetivo era dirigir até onde a Pan-americana termina nessa interrupção que citamos no começo deste diário! Mas antes de chegarmos lá, fizemos uma parada em Puerto Quimba para, com um pequeno barco de transporte local, conhecermos a capital da Província de Darién, La Palma. O trajeto de barco foi um passeio por entre florestas de mangue intocadas, primeiro descendo o Rio Iglesias e depois cruzando uma imensidão de água onde o rio Turia encontra o Golfo de San Miguel. La Palma, apesar de ser a capital, possui apenas uma rua, mas é interessante o suficiente para gastarmos algumas horas percorrendo-a. Tudo para ver mais de perto como é a vida num lugar isolado como esse.

Novamente embarcados no Lobo, seguimos os cinquenta e cinco quilômetros que nos faltavam para o final da estrada. Ao contrário do que muitos diziam, que era possível só de 4×4, o acesso a Darién é por uma estrada de asfalto transitável, mas esburacada. A rodovia Pan-americana termina na cidade de Yaviza, onde, do outro lado do rio Chucunaque, está uma das regiões mais intocadas do mundo cuja principal dificuldade é a sua condição geográfica: trilhas não marcadas, grande quantidade de rios, animais venenosos, malária, dengue e os narcotraficantes também são um dos perigos oferecidos. Dali pra frente, somente a pé ou de barco e com autorização do exército. Claro que, na história, já houveram alguns aventureiros que ousaram cruzar o Estreito de Darién de carro ou moto e muitos conseguiram, vejam:

Yaviza, definitivamente, não é um destino turístico, mas mesmo assim nos agradou. Negros e indígenas da tribo Emberá e Wounaan (que diferem apenas pela linguagem) convivem nessa região e ao contrário da Cidade do Panamá, onde dizem que os panamenhos não gostam de estrangeiros, no interior, as pessoas são muito receptivas. Nosso prêmio de chegar até lá? Duas cervejas bem geladas para celebrar. E foram as mais geladas que tomamos em todo Panamá.

Meia volta e voltamos os mais de 280km até a capital. No caminho, uma história interessante… Paramos em um restaurante local para almoçar. Almoçavam também dois alemães que, desde que chegamos, nos olhavam desconfiados. Então um se virou para nós e perguntou:

– Vocês vieram com esse carro desde o Brasil?

– Sim!

– Mas vieram dessa direção? Do Estreito de Darién?

Caímos na gargalhada. Tínhamos que ter dito sim e que cruzamos tudo por terra!

Se é sorte ou azar, não sabemos, mas chegamos na capital e o vazamento da direção hidráulica voltou a acontecer. Azar que estragou novamente, mas muita sorte por não ter acontecido em Darién. O conserto na mangueira havia resistido, mas o anel de vedação que havíamos conseguido naquela segunda-feira de carnaval não era apropriado para tanta pressão. O trocamos pelo correto e tudo voltou a funcionar novamente. No dia 25 de fevereiro estávamos cem porcento prontos para pegar a estrada, agora para o oeste do Panamá, na direção de Costa Rica.

 

PS: Nunca vimos uma cidade com tantos centros comerciais, Mac Donald’s e outras franquias de fast-food como a Cidade do Panamá. Bolívia e Peru são países com pouca influência americana. Nossa percepção foi que quanto mais ao norte, maior essa influência. Colômbia mais que o Equador e o Panamá muito mais (um país totalmente americanizado, inclusive por usar o dólar como moeda oficial).

Itinerário percorrido

Itinerário Panamá 1

Fotos

[flickr]set:72157650855343340[/flickr]

Compartilhe

Veja Também

Diário de Bordo 1 – Projeto do novo motorhome

28 | abr | 2014

Diário de Bordo 2 – Projeto rabiscado, agora é hora de construí-lo!

13 | maio | 2014

Diário de Bordo 3 – O mundo de um outro ponto de vista!

8 | jun | 2014