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Diário de Bordo 30 – Canadá 2

(14/10/2015 a 28/11/2015)

Fechado para o inverno.

Era meados de outubro quando voltamos do Alasca para o Canadá e o inverno já iniciava por lá. Rios e lagos começavam a congelar, ursos hibernavam, pássaros migravam, alguns locais aos poucos partiam para regiões mais quentes e todos os lugares possuíam uma placa de “fechado para o inverno”. Certas estradas também já estavam fechadas e infelizmente não pudemos conhecer alguns lugares planejados, como a cidade Dawson, que era o ponto final da Corrida do Ouro e base para a exploração desse metal.

Dirigimos a maior parte do trajeto em uma das estradas mais lendárias da América do Norte, a Rodovia Alasca (Alaskan ou ALCAN Highway). Ela foi construída durante a Segunda Guerra Mundial com o objetivo de conectar os Estados Unidos ao Alasca pelo Canadá. A ideia de construí-la já existia desde 1890, mas foi o ataque dos japoneses em Pearl Harbor que fez com que os trabalhos iniciassem, uma vez que os Estados Unidos temiam uma invasão japonesa pelo Alasca. Depois de nove meses de trabalho duro, em 1942, os mais de 16.000 soldados e civis americanos completaram os 2.700km da rodovia. Hoje, com as obras de restauração, foi encurtada e possui 2.232km de extensão. Um dos coronéis declarou que essa obra foi a maior e a mais difícil, depois do Canal do Panamá.

Nosso trajeto de Beaver Creek (fronteira com o Alasca) até a cidade de Fort Nelson, pela ALCAN, teve diversos momentos marcantes. Na região do Lago Kluane, além de muitos outros animais, não acreditamos quando vimos um gato grande de rabo curto, com patas traseiras maiores que as dianteiras e com um tufo de pelo na ponta das orelhas cruzar a nossa frente: era um lince, um raro felino que habita apenas o Hemisfério Norte. Pena que não conseguimos fotografá-lo. Na mesma noite vimos mais uma vez o espetáculo da aurora boreal e, em Watson Lake, deixamos nossa passagem registrada na Floresta de Placas. Somamos mais uma placa as mais de 72 mil que já foram penduradas no local por outros viajantes. Também pudemos relaxar do frio nas águas termais Liard.

Alguns quilômetros antes de Fort Nelson saímos da Rodovia Alasca e dirigirmos por uma das regiões mais remotas do Canadá. Entramos no Northwest Territories, terra vasta, cortada por diversos rios, habitada por pequenas comunidades indígenas Nahhani e que serviu de passagem para muitos exploradores e comerciantes de pele durante a colonização do Canadá. Dirigimos o trajeto conhecido como Dehcho Loop e também um trecho chamado Rota das Cachoeiras, devido a grande concentração delas próximo a estrada. Como já citamos, tudo estava fechado devido ao inverno, mas não deixamos de conhecer nada, mesmo com o intenso frio e neve. Todas as noites sonhávamos em ver mais uma vez a aurora boreal, já que ali é muito comum de avistá-la, mas só tivemos noites nubladas. Também tínhamos a esperança de ver muitos animais. Na neve até víamos rastros, mas esse era o único sinal de vida deixados por eles.

Apesar das limitações de exploração devido ao inverno, nossa viagem por ali serviu para uma coisa: experimentar como é viver dentro do carro no frio. Não foi uma tarefa muito fácil. Percebemos que o Lobo, por seu isolamento, matinha a temperatura interior aproximadamente 10oC acima da exterior. Quando estávamos dentro do motorhome e nosso corpo trocava calor com o ambiente, este acabava aquecendo-se um pouco. Normalmente conseguíamos manter, durante o dia, uma temperatura perto dos 15oC dentro e, se ligássemos o fogão para esquentar água ou cozinhar, a temperatura passava dos 20oC. Apenas a noite, quando entrávamos debaixo das cobertas e nosso corpo parava de trocar calor com o ambiente, que a temperatura caía bastante e amanhecíamos com o ambiente bem frio. Um dia chegou a 3oC, quando fora estava uns -7 o. Aí o jeito era pular da cama e esquentar água para o café e assim fazer a temperatura subir novamente. A Michelle inventou uma regra a seu favor, que só levantaria da cama quando a temperatura interna chegasse a 10oC. Viver assim no carro por alguns dias é uma coisa, mas passar meses, não seria possível. Estava na hora de instalarmos um aquecedor e essa tarefa estava programada para nosso próximo destino, Edmonton.

Quando ainda estávamos em Moab, Utah, EUA, conhecemos o canadense Trevor, que quando soube de nossa passagem pelo Canadá nos convidou para visitá-lo em Edmonton e ofereceu qualquer ajuda sua e também de seus amigos do grupo Alberta Land Rover Enthusiasts. Aceitamos o convite do Trevor e os dias que passamos em sua casa foram dedicados para a preparação para a etapa da Rússia. Com sol, chuva ou neve, o Roy estava fora de casa (nosso carro não cabia nas garagens cobertas e aquecidas oferecidas pelos amigos) trabalhando na instalação de dois aquecedores: um para o motor e outro para a parte interna de nosso motorhome. Também tivemos que adaptar um sistema interno de água, já que as caixas d’água externas iriam congelar em breve. Trocamos os óleos dos diferenciais e caixa de transferência por óleos 100% sintéticos. Encomendamos algumas peças sobressalentes da Inglaterra para levar conosco e ainda tivemos que reparar novos vazamentos de óleo, coisa comum num Land Rover. Agradecemos imensamente aos amigos landeiros por terem nos recebido tão bem. Ao Bill Inch, Bert van Riel, Jason e Kellie Porter, Kevin e Jennifer Buerfeind, a Downa pelas deliciosas compotas e especialmente ao Trevor que nos acolheu em sua casa.

Ainda em Edmonton demos entrevistas a duas TVs locais. A repercussão foi muito grande e resultou numa das maiores coincidências da nossa viagem até agora. Quem leu nosso livro deve lembrar de uma passagem que citamos sobre o casal Milan e Justine, que conhecemos na Austrália e que por coincidência reencontramos um ano depois dentro de uma mesquita no Irã. Pois é, depois daquele encontro, praticamente não nos falamos mais. Sabíamos que ele era tcheco, ela polonesa e que moravam no Canadá, mas não fazíamos a mínima ideia onde. Milan e Justyna (descobrimos que escrevemos seu nome errado em nosso livro, rsrsrs), estavam assistindo um programa na TV e no intervalo decidiram mudar de canal e foi quando se depararam com nós dando entrevista. Eles não acreditaram e como não possuem internet em casa, ligaram para um amigo para ele nos mandar um e-mail avisando que eles moravam em Edmonton e queriam nos encontrar. Quando lemos seu e-mail caímos duros de surpresa e felicidade e dois dias mais tarde estávamos no apartamento deles saboreando um almoço delicioso e incríveis histórias.

De Edmonton voltamos pela segunda vez aos Parques Nacionais Jasper e Banff, aqueles que cruzamos na primeira passagem pelo Canadá e que estavam encobertos pela fumaça das queimadas. Os dias que passamos nessa região realmente foram um test-drive para a Rússia, pois ali enfrentamos os dias mais frios da viagem até então, com o recorde de temperatura de -15o C. Ainda bem que instalamos os aquecedores no carro. Podemos dizer que existe a vida antes e a vida depois da instalação deles.

Tivemos dias intercalados com forte nevasca e com céu azul, com um visual sem igual. Nesses momentos de sol, pós-nevasca, vimos o quanto vale a pena enfrentar o frio para presenciar o inverno e o espetáculo da natureza nessa estação do ano.

Com o frio, vieram novas rotinas também. Ver no termômetro de nosso carro o quão frio estava lá fora não era motivador para sair da cama e levantar cedo não estava sendo uma tarefa fácil. Mas se queríamos aproveitar bem a luz do dia, era necessário, já que as quatro horas da tarde anoitecia. Tivemos que criar o hábito de retirar a neve acumulada de cima do carro, principalmente no painel solar, antes que a neve virasse gelo. Os banhos se tornaram mais raros e quando aconteciam, tomávamos durante a parte mais quente do dia. Descobrimos que com tanto frio, os trincos congelam e não conseguíamos abrir as portas, ou, as vezes, trancá-las. Outro problema que surgiu foi a grande condensação. Nosso corpo involuntariamente passa umidade para o ar pela respiração, mas grande parte da umidade era gerada dentro do carro quando tomávamos banho quente ou cozinhávamos. E o vapor d’água acha os lugares mais inapropriados para condensar: dentro dos armários e embaixo de nosso colchão. Esse é um inconveniente que teremos que aprender a conviver.

Mas as belezas das paisagens superavam de longe as dificuldades que surgiram com o frio. Descrevemos como ESPETACULARES os dias que passamos nas Montanhas Rochosas do Canadá! Primeiro dirigimos pela Estrada Maligne que termina no lago de mesmo nome. Neste trajeto caminhamos pelo Cânion Maligne por uma trilha congelada que tínhamos que nos agarrar no corrimão para não escorregar, de tão lisa. E visitamos os lagos Medicine e Maligne, onde também fizemos caminhadas curtas. Alguns quilômetros mais adiante, dirigindo pela Rodovia Icefields, acampamos no estacionamento da cachoeira Athabasca e no outro dia presenciamos um dos amanheceres mais lindos de nossas vidas. As oito horas da manhã, com uma temperatura de -12 graus, os primeiros raios de sol surgiram no meio da imensidão branca. A luz se movimentava conforme encontrava um caminho por entre a floresta e os raios de sol dançavam a nossa frente num jogo de luz e sombra similar a uma aurora boreal. Não demorou muito para nossos pés e mãos congelarem. Segundo a Michelle, foi de chorar: “Muita dor! Parecia que todas as minhas unhas foram arrancadas e que as pontas dos dedos estavam sendo espetadas com agulhas”.

As montanhas estavam lindas pelo contraste do branco da neve com o escuro das rochas. Cruzamos o glaciar Athabasca debaixo de uma grande tempestade e a visibilidade ficou limitada pelos cristais de gelo trazidos pelo vento. Surreal e impossível de sair do carro, de tanto frio e vento!!! O lago Louise também estava diferente da primeira vez que o vimos. Vale a pena ver as fotos desses dois lugares em nosso Diário de Bordo – Canadá 1 para compará-las com as atuais.

Fizemos também uma caminhada nas proximidades do lago Peyto, considerado um dos lagos mais lindos do Canadá. Haviam outras pessoas caminhando por ali, mas todos equipados com esquis cross-country ou com sapatos próprios para a neve (snow shoes), para não afundar na neve profunda. E nós? Equipados com as nossas botas velhas de caminhada que nem eram mais impermeáveis. Mas não ficamos em casa. Encaramos a neve e os -8 graus celsius para vermos NADA do lago Peyto. Visibilidade zero por causa da nevasca! Mesmo assim valeu a pena, pois assim que nosso corpo esquentou, nos divertimos pelas trilhas no meio da floresta branca.

Queríamos explorar mais esses dois parques e também os vizinhos Yoho e Glaciar. Mas como a maioria das estradas e trilhas estavam abertas somente para esquis, o jeito foi seguir rumo a Vancouver.

O Parque Nacional Glaciar acumula muita neve no inverno e, por seus vales serem íngremes e profundos, é o paraíso das avalanches. Por muitos anos o lugar foi uma barreira natural para a colonização do Canadá. Mas o homem venceu a natureza e construiu por ali a ferrovia Canadá-Pacífico, finalizada em 1885, e posteriormente a rodovia Trans-Canadá, finalizada em 1963. Ambas possuem diversos túneis nas partes mais críticas de avalanches e guardas-parque monitoram a região constantemente. Se há risco de avalanche, a rodovia e a ferrovia são fechadas e com tiros de canhões, as avalanches são intencionalmente provocadas. Curioso, não? Podemos dizer que eles promovem uma guerra contra as avalanches.

Nosso caminho para Vancouver foi lindo, como sempre neste país. Descemos um trecho do Cânion do Rio Fraser e posteriormente dirigimos pela Rodovia Pavilion-Clinton (99). Logo depois de Whistler (estação de esqui que ficou muito conhecida depois de sediar as Olimpíadas de Inverno de 2010) chegamos a Squamish, onde participamos de um encontro de Land Rovers, a convite do amigo e landeiro Andrew Goh. Além do encontro, foi feito uma trilha por entre uma linda floresta, mas para nossa casa-ambulante, não deu para encarar, pois iriamos quebra-la inteira. Mas participamos a pé, ajudando os amigos que estavam no volante a transpassar os diversos obstáculos naturais. E que trilha!!! Ali, entre tanta gente boa, conhecemos o Chris que ofereceu para acamparmos em sua casa no centro de Vancouver. Não poderíamos ter encontrado lugar melhor para ficarmos. Bem no centro da cidade e no meio do Kitsilano Beach Park.

Enquanto esperávamos a emissão de nossos novos passaportes pelo Consulado Brasileiro de Vancouver, trocamos a bomba d’água do motorhome que parou de trabalhar e colocamos um alternador novo, mais potente. O restante do tempo aproveitamos para explorar Vancouver a pé. O primeiro dia foi de muita chuva, mas os próximos cinco dias foram de céu azul e sol, o que tornou nossa estada nessa cidade muito especial. Nos encantamos com Vancouver, uma cidade grande com ar de pequena. Há parques por todos os lados e a beira-mar foi conservada como área pública. A influência asiática é muito grande e pode ser notada nos traços das pessoas e nas comidas servidas na maioria dos restaurantes. Vancouver é considerada uma das cidades mais caras do mundo para se viver, mas encontramos restaurantes asiáticos com bons preços e depois de muito tempo só cozinhando no Lobo, tivemos a oportunidade de comer fora novamente.

Ainda antes de partirmos, conhecemos o brasileiro Ronaldo, sua esposa dinamarquesa Janni e o cachorro Nero. Adoramos as boas conversas com eles e também o passeio até o Mirante Cypress, de onde tivemos uma vista maravilhosa de toda Vancouver e lá no fundo, os Estados Unidos, para onde dirigimos no dia seguinte.

 

Para mais informações sobre esse trajeto, veja:

Acampamento ao lado do rio Liard;

Rota das Cachoeiras;

Mais de uma semana em Edmonton;

Saímos na TV aqui no Canadá;

Bora nos ajudar a divulgar;

Bem-vindo inverno!;

Momento mágico!;

Caminhada até o lago Peyto;

Tinha mais gente curtindo o frio;

Lobo da Estrada, ou melhor…;

Vancouver;

Passaportes novos!;

Recuo dos glaciares.

Itinerário percorrido

Itinerário Canadá 2

Fotos

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