ícone lista de índices Índice

Diário de Bordo 33 – Rússia 1

(16/01/2016 a 14/03/2016)

Nós estávamos um pouco apreensivos antes de ir para o Extremo Oriente Russo. Haviam os grandes desafios do frio e da comunicação, mas também o que nos deixou assim foram as informações deturpadas que recebemos: de que o povo de lá é rude e grosseiro, as cidades são decadentes, as estradas são ruins e a polícia é corrupta.

Aldous Huxley se expressou muito bem quando escreveu que “viajar é descobrir que todo mundo está errado sobre os outros países”. De todos os lugares que já visitamos em nossas viagens, este foi um dos que mais nos cativou, mais fizemos amigos e que mais tivemos surpresas positivas com a polícia. Talvez pelo frio e pelo regime socialista que este povo experimentou durante tantos anos, eles não são abertos e calorosos como os brasileiros e não respondem a um aceno de primeira. Mas uma vez que você precisa de sua ajuda, dificilmente receberá um “não”. Em lugares extremos as pessoas aprendem a ajudar, porque sabem que podem precisar de ajuda a qualquer momento.

Geograficamente falando, o Extremo Oriente Russo é uma região muito remota que se situa além da Sibéria. Compreende as terras que são banhadas pelo Oceano Pacífico e Mar do Ártico. Até algum tempo atrás a única conexão entre a capital e este lado menos desenvolvido do país era pela ferrovia transiberiana.

A transiberiana é uma mega obra com 9.259km de extensão, que une Moscou a Vladivostok abrangendo 8 fusos horários. Dá para imaginar? Mas lá existe, também, a linha Baikal-Amur (BAM), com 4.324km, que corre ao norte paralelamente a transiberiana. Ela começa na cidade Tayshet, próximo ao Lago Baikal (Sibéria) e vai até o Oceano Pacífico. Foi construída para deixar a conexão férrea leste-oeste menos vulnerável, já que a transiberiana possui partes que passam muito perto da China. Essa ferrovia desenvolveu bastante a mineração do norte. É tão rica em minério que nosso livro guia escreve que lá existem todos os elementos da Tabela Periódica, principalmente ouro. É curioso que próximo a transiberiana não se vê muitos caminhões, pois o transporte é todo por trem. E esses sim, vê-se a cada instante quando se dirige próximo a ferrovia.

Nossa entrada na Rússia foi por Vladivostok. O porto da cidade foi o escolhido para recebermos nosso carro que vinha de navio dos EUA. Mas uma tempestade de dois dias cobriu a cidade de neve e atrasou os procedimentos portuários. Os navios estavam com dificuldade de atracar no porto e os caminhões não conseguiam dirigir sobre as estradas com neve e gelo para retirar os containers. Usamos os dias de espera para nos engajarmos com o país, aprender algumas palavras importantes em russo, conhecer as pessoas e experimentar a comida. Caminhamos sobre o mar congelado, vimos homens pescando sobre o gelo, visitamos museus, cafés, a estação de trem, o centro da cidade, mirantes, um submarino, faróis e tudo mais que há de belo por lá.

E quando retiramos o carro do container e o abrimos, levamos um susto. Enlatados, água, azeite de oliva, vinagre… tudo estava congelado. A bateria não deu nenhum sinal de carga e tivemos que ser rebocados para fazer o motor funcionar. O primeiro pensamento foi: se isso aconteceu a uma temperatura de -15°C, como sobreviveremos em -50°C? Nosso agente aduaneiro não foi nem um pouco otimista em relação a nossos planos de irmos para o Polo do Frio, imagina se tivéssemos falado da Latitude 70! Nos restava encarar para ver no que ia dar. Mas ainda antes de pegarmos estrada, trocamos as baterias do nosso motorhome e quando mexemos com os cabos para reconecta-los, pelo frio, quebraram as capas plásticas de proteção de tão sensíveis. Novamente, isso aconteceu a -15°C, como seria a -50°C? Esta resposta obtivemos no próximo mês: no frio extremo, quanto menos mexer nas coisas de plástico e borracha, melhor. Mexeu, quebrou. Em Oymyakon, a -55°C, quando trabalhávamos em uma mangueira do tanque reserva de combustível, feita de borracha e lona dupla para ser mais resistente, ela quebrou-se em nossas mãos com muita facilidade. Esses materiais submetidos a temperatura fria extrema atingem o seu ponto de transição vítrea e quebram como vidro.

Iniciamos, então, nossa viagem pelo Extremo Oriente Russo.

A noite costumávamos dormir em postos de combustível ou em algum lugar dentro das cidades por onde passávamos. Assim tínhamos maior segurança e podíamos ir testando nossos equipamentos e vendo qual seria o frio máximo que ainda poderíamos manter o carro desligado durante a noite. Se o carro não pegasse noutro dia, pelo menos teríamos a quem recorrer para um reboque. Nós instalamos dois aquecedores e ambos funcionam a diesel. Um era para aquecer o ambiente interno do motorhome e o outro para aquecer a água de arrefecimento (radiador) do motor. Nesse segundo, há uma bomba d’água que faz a água quente circular no bloco do motor, aquecendo-o, o que ajuda na hora da partida. É uma coisa interessante: as baterias também perdem potência com o frio, mas não são as principais culpadas do motor não girar pela manhã. O principal problema é o óleo, que endurece e deixa o motor muito pesado.

Na matemática, traduziríamos isso com essa formula: PROBLEMA = temperatura x tempo. Desligar o carro no frio não é tão perigoso, desde que você não o deixe exposto por muito tempo a uma temperatura baixa. Uma noite toda desligado, dependendo da temperatura, pode ser problema, pois é tempo suficiente para o óleo endurecer e travar o motor. Isso acontece mesmo que o óleo seja para baixas temperaturas. Nós usávamos 5W40 100% sintético.

Uma vez que nós entendemos essa equação, para que o carro não precisasse ficar ligado 100% do tempo (o que aumentava seu consumo e perturbava nosso sono pelo ruído), desenvolvemos uma técnica, que intensificava com o aumento do frio: ligávamos e desligávamos o carro durante a noite, procurando não deixa-lo desligado por mais de duas horas. Ex.: O desligávamos pelas 20h. Antes de dormir o ligávamos até as 2h da manhã, desligando-o até as 4h, ligando-o até as 6h, desligando-o até as 8h, e ligando-o novamente para viajar. Isso funcionou bem, mas as vezes não acordávamos para fazer uma das operações e aí esculhambava tudo. Mas quando a temperatura baixou dos -30°C, a noite não o desligávamos mais, tampouco durante o dia, a não ser que a parada fosse curta, para um almoço ou abastecida. Abaixo dos -40°C era melhor esquecer que existia uma chave de ignição. Deixar o carro ligado 24h por dia + a utilização do diesel para o aquecedor ambiente fez com que nosso consumo aumentasse +/- nessa ordem: de 8,5Km/L para 5Km/L, considerando que durante o dia, nesta parte da viagem, estávamos quase sempre em deslocamento. Podemos dizer também que o motor ligado na lenta + o aquecedor interno consumiam juntos em torno de 1,2L/hora.

Interiormente, por incrível que pareça, o carro se comportou bem! Com o aquecedor ligado mantínhamos a temperatura de +10°C mesmo que fora marcava -40°C ou -50°C. Foi interessante que em sua construção, para maior aproveitamento de espaço, seguimos o desenho do chassis e isso fez com que criássemos um degrau internamente. Sem querer projetamos algo similar aos iglus dos esquimós no Alasca – que também possuem um desnível em seu interior para que o frio desça para lá. Em nosso carro o degrau mais baixo é onde fica a geladeira e a porta de entrada. Se deixássemos qualquer coisa ali, amanheceria congelada, pois no piso a temperatura era sempre negativa. Nesse caso a geladeira pode ficar desligada por 3 meses, o que nos poupou energia para as gerações de calor, que eram mais importantes. As comidas que comprávamos que eventualmente precisavam ficar congeladas simplesmente as mantínhamos numa sacola plástica fora do carro, sobre o rack. Esse era nosso freezer natural.

Nossa torneira e chuveiro ficaram inutilizados nesse tempo, pois a caixa d’água é externa e lá a água congelaria em um segundo. Até improvisamos um galão para água dentro do carro, mas como o único lugar que achamos para ele foi no degrau baixo, o sistema congelou mesmo assim. Não funcionou. Passamos, então, a carregar água em garrafas de 10L e a jogávamos num copo para lavar louça, escovar os dentes, etc. O pior foi que o ralo da pia também congelou, então este copo servia também para esvaziá-la após seu uso, quando jogávamos a água para fora da janela de copada em copada.

Os baús debaixo da cama nós batizamos de permafrost. A humidade ficou congelada no inverno todo. Parecia que havia nevado lá dentro. Mas isso não nos incomodava, pois água congelada tem sua vantagem – não cria fungos. Por trás dos sofás, que a noite viram cama, também havia gelo gerado pela condensação. Quando os encostos eram postos para formar a cama, as paredes revelavam uma camada espessa de gelo que ficavam exatamente aos nossos pés e cabeças. Se encostássemos na parede enquanto dormíamos, encostávamos no gelo. O fundo dos armários também congelava.

Nós sofríamos para ir no banheiro. Número um nem tanto, pois para isso temos um banheiro portátil dentro do carro. Mas número dois tinha que ser fora, indiferente do frio que fazia. As vezes era no mato, com neve que afundava até o joelho. Outras vezes em algum banheiro de estrada, de posto de combustível ou restaurante e no oeste da Rússia eles são aquelas casinhas de madeira com um buraco na terra ou com um latão. São frios de congelar o traseiro e sua aparência era de chorar. Dejetos humanos também congelam e amontoam-se em forma de estalactites e estalagmites, assim como numa caverna, se é que vocês nos entendem!!! Pelo menos o cheiro deles não era tão ruim.

E assim fomos viajando, aprendendo com as adversidades do frio dia após dia. Seguindo a ferrovia transiberiana, passamos por cidades interessantes como Arsinyev, que possui uma fábrica grande de helicópteros, Khabarovsk, Birobidjan e Blagoveschensk de onde víamos o sol se pondo na China, que ficava já do outro lado do rio. Como o rio estava congelado, os checkpoints militares ficavam sobre o gelo, tanto do lado russo como chinês. Interessante.

Adorávamos fotografar as casas antigas de madeira com esquadrias coloridas e ornamentadas, que contrastavam com os prédios soviéticos quadrados e sem manutenção. Muitos prédios pareciam até abandonados, apesar de que muitos estavam mesmo abandonados. Eles nos transmitiam uma impressão de serem frios e desaconchegastes, mas essa impressão mudava uma vez que entrávamos em um apartamento. Em praticamente todas essas cidades haviam belas esculturas e escorregadores de gelo em suas praças principais e as crianças e adultos se divertiam a beça.

E chegamos na bifurcação que “separa os homens dos meninos”, como diriam alguns de nossos amigos. Próximo a Never saímos da rodovia transiberiana e fomos ao norte pela M56, a rodovia que nos levaria para a República de Sakha ou Iacútia, o maior estado do mundo e o estado onde viveríamos as maiores aventuras desta viagem. Ali começou a esfriar de verdade. As estradas deixaram de ser asfaltadas e o branco tomou conta da paisagem. A cada curva sentíamos que os pneus de inverno com travões metálicos estavam fazendo diferença. Eles são desenvolvidos com uma borracha mais macia e não ficam endurecidos com o frio como os pneus normais, por isso aderem melhor.

Cruzamos Tynda, Neryungri, Aldan e após alguns dias avistamos o Rio Lena, o primeiro de muitos que dirigiríamos sobre o seu gelo. Esse é um rio bastante largo e no verão, faz-se necessário cruza-lo de balsa para chegar na capital Yakutsk. Mas no inverno, dirigir sobre ele é mais emocionante.

Yakutsk foi uma boa base para os últimos preparativos para o nosso grande objetivo da Latitude 70. Junto com os experientes do frio, fizemos mais algumas melhorias no carro que ajudariam a conservar o calor. Os russos chamam isso de invernização, algo assim, que seria a preparação para o frio (escreveremos no futuro um POST específico sobre esta preparação).

Foi engraçado que as primeiras duas noites em Yakutsk, dormimos em frente ao Palácio do Governo, pensando que aquele prédio era comercial. E muita gente nos viu lá, tanto que mais tarde, quando já havíamos feito muitos amigos nesta cidade, nosso acampamento virou motivo de piada e até o assessor do governador perguntou-nos o que fazíamos lá, kkk.

Prontos, embarcamos no Lobo e começamos a dirigir ao oeste novamente, mas agora pela famosa Rodovia dos Ossos, que termina após 2.200km na cidade Magadan. A Rodovia dos Ossos ganhou fama mundial por sua história horripilante, quando fora construída pelos “inimigos políticos” do governo do Stalin. Diversas prisões (gulags) foram criadas para aprisionar essas pessoas, que eram forçadas a trabalhar como escravas tanto na construção desta estrada, como em mineração e extração de madeira. Há um filme baseado numa história que não se sabe se é real, mas que conta sobre alguns presos que fugiram de um gulag e caminharam até a Índia, onde encontraram a liberdade. O filme se chama em inglês, “The Way Back” e em português, “O Caminho da Liberdade”. Já no começo do filme, quando mais uma leva de prisioneiros chegava num desses gulags, o carcereiro os alertou que ali, o que os aprisionava não eram os cercados e portões, mas sim a natureza, que é inóspita e impiedosa. O nome “Estrada dos Ossos” vem dos esqueletos que formam sua base. Como o trabalho era sem trégua, muita gente morria em seu labor e eram enterrados na própria estrada. Em nosso caminho passamos por cidades que já foram gulags e por vilas que foram fazendas coletivas, onde trabalhava-se para o sistema socialista.

Aí veio o Polo do Frio, mas ao invés de reescrevermos essa história no lugar habitado que registrou a menor temperatura da história, a incrível marca de -71.2C, os convidamos a reverem nosso post sobre Oymyakon: O lugar habitado mais frio do mundo!

Mais adiante na Estrada dos Ossos cruzamos Ust-Nera e após 80km, mais uma bifurcação importante, onde a esquerda, saindo da principal, começaria a estrada de inverno (zimnik) que planejávamos dirigir para atingirmos a Latitude 70. Fizemos até a permissão necessária, pois estaríamos entrando em território controlado pelo exército por se situar as margens do Mar do Ártico. Mas amigos russos, pensando em nossa segurança, não nos recomendaram segui-la. Há muito perigo nessas estradas de inverno, especialmente por estarmos sozinhos e pelas temperaturas ainda estarem muito baixas.

Nós entramos na estrada por cerca de 4km e paramos. Para Pevek, na Latitude 70, faltava-nos 2.200km, que pelas médias horárias que se dirige ali, talvez levássemos 20 dias só de ida e ainda precisaríamos voltar. Puxa, realmente era hora de identificar os pros com calma, pois de contras já tínhamos uma lista completa preenchida por nossos amigos. Aquela noite dormimos lá mesmo. Os caminhões que passaram possuíam pneus gigantes e seguiam todos em comboio. Nós conversamos com eles e nenhum viajaria tão longe quanto pretendíamos. Outro dia, com a decisão tomada, um pouco tristes, fizemos meia volta e seguimos em direção a Magadan, que se situa no final da Estrada dos Ossos. Decidimos dar-nos mais alguns dias para pensar no assunto. Mas sabíamos, também que se titubeamos na primeira vez, quando voltássemos de Magadan seria ainda mais difícil de encarar aquela estrada. Aos poucos começamos a aceitar que havíamos mesmo desistido da Latitude 70 russa. Nossa latitude máxima até então neste país havia sido 64°37’07’’N numa curva da Estrada dos Ossos próxima a Ust-Nera.

Mas a viagem para Magadan foi muito legal também. Completar a Estrada dos Ossos já é uma grande conquista e a cidade dá um banho de história. Ela não é antiga, foi fundada em 1930, mas foi um importante ponto de passagem dos prisioneiros do regime stalinista. Perguntamos aos amigos que fizemos por lá se algum tinha parentes que foram prisioneiros do regime e muitos disseram que sim. Afinal, não haveria muitos motivos para alguém decidir por conta própria morar num lugar tão isolado do resto do mundo. Em Magadan tivemos também a oportunidade de dirigirmos o Lobo sobre o Oceano Pacífico congelado e vermos a pesca de peixes e caranguejos sobre o gelo.

Na volta de lá dirigimos um trecho por uma outra estrada e encontramos a Estrada dos Ossos próximo a cidade Susuman, que nos encantou por sua arquitetura soviética intensa. Assusta um pouco no começo, mas se você gasta um pouco do seu tempo nela, passará a ver o burburinho das pessoas e carros e começará a admira-la. E próximo a Susuman está Kadykchan, uma cidade construída por prisioneiros na época da segunda guerra mundial. Ali moravam pessoas que trabalhavam nas minas de carvão mineral. Mas com a dissolução da União Soviética em 1991, a extração do carvão não interessou mais, já que não era rentável e as minas foram fechadas. Como a cidade se situava no meio do nada, não haveria outra opção para aqueles moradores a não ser abandona-la.

E o inesperado aconteceu! Aquela noite, quando estávamos estacionados no posto de combustível de Susuman para passar a noite, um russo bateu em nossa porta. Era o Konstantin, um viajante a bordo de uma Land Cruiser. Saímos do carro para cumprimenta-lo e descobrimos que ele também estava disposto a arriscar uma viagem ao norte, mas por uma estrada de inverno diferente da que nós havíamos planejado. Em dois carros a segurança de ambos aumentaria exponencialmente, então, o sonho da Latitude 70 voltou a tona e o desfecho poderá ser lido nesse POST que já escrevemos sobre o assunto: Passo a passo da Latitude 70 na Rússia.

No mais é isso pessoal! Esperamos que gostem da Rússia assim como nós gostamos. Até a próxima…

 

Veja mais detalhes sobre esse trajeto em:

Itinerário percorrido

Itinerário percorrido Rússia 1

Fotos

Compartilhe

Veja Também

Diário de Bordo 1 – Projeto do novo motorhome

28 | abr | 2014

Diário de Bordo 2 – Projeto rabiscado, agora é hora de construí-lo!

13 | maio | 2014

Diário de Bordo 3 – O mundo de um outro ponto de vista!

8 | jun | 2014