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Diario de Bordo 34 – Russia 2

(14/03/2016 a 12/04/2016)

A tão esperada primavera!

A primeira impressão ao chegarmos em Yakutsk, em nossa passagem antes de atingirmos a Latitude 70 na Rússia, não foi das melhores. Essa, que é a capital da Iacútia, possui uma peculiaridade – quando a temperatura está abaixo de -40C, por se situar numa depressão, é comum formar-se uma neblina densa sobre ela. Além de não enxergarmos um palmo a nossa frente e do intenso frio, a sensação térmica negativa era agravada pela falta de sol. Mas agora que regressávamos pela segunda vez a cidade, ela nos deu as boas-vindas com céu azul, sol e uma temperatura de apenas -20C. Depois dos -55C que enfrentamos nos meses anteriores, podíamos dizer que era quase verão. Na verdade era início da primavera.

Os amigos que fizemos por lá, sabendo que retornaríamos a Yakutsk, nos aguardavam com calorosos abraços e uma programação de visitas. Nos três dias que ficamos com eles visitamos o Museu do Mamute, que possui exemplares de mamutes, rinocerontes, bisões, cavalos, leões da caverna, dentre outros animais que habitaram a região há milhares de anos atrás; o Museu dos Minerais, que exibe as riquezas encontradas no estado da Iacútia (pedras preciosas, ouro, prata, diamantes e dentes de mamutes); e o Permafrost Kingdom, uma caverna subterrânea que fica congelada o ano inteiro e é decorada com esculturas de gelo. Ao final de cada dia nos reuníamos com os amigos para confraternizar.

Aproveitamos também para fazermos manutenções no carro, como troca de óleo e os amortecedores traseiros danificados pelo frio. São raros os Land Rovers na Iacútia, assim como peças sobressalentes para eles, então estávamos com dificuldades de encontrar os amortecedores corretos. O pior é que ainda tínhamos mais uma estrada de inverno (zimnik) pela frente e com os amortecedores naquele estado não haveria condição de seguirmos por ela. Nessas horas os amigos fazem a diferença. O Konstantin, russo que dirigiu para a Latitude 70 conosco, tinha um amigo landeiro em Moscou, que conhecia outro landeiro em Yakutsk e assim conhecemos Dmitrii e Alexandra, um casal bacana que nos deu um par de amortecedores usados para que pudéssemos seguir viagem.

Seguimos então rumo a Mirny, que fica a 820km a oeste de Yakutsk. Já na cidade, quando estávamos num café usando a internet, uma menina local nos fez essa pergunta: “O que dois brasileiros estão fazendo em Mirny?” Mas quem queria fazer perguntas éramos nós: “O que mais de 37 mil pessoas faziam naquele fim de mundo gelado?” A resposta está no buraco de 525m de profundidade e 1,25km de diâmetro localizado ao lado da cidade, um dos maiores do mundo escavados pelo homem. O que os expedicionários soviéticos encontraram ali, no ano de 1955, justifica tudo: diamantes. Mas não foi um ou outro. Vinte e cinco por cento dos diamantes do mundo procedem dessa mina. Depois de 44 anos de extração, retirando toneladas de terra e quilos de diamantes, a mina de Mirny foi desativada em 2001 e posteriormente reaberta, porém hoje ela é subterrânea e suas atividades acontecem a mais de 1,2km de profundidade.

Mirny, que é um oásis no meio da vasta Sibéria, foi o último local com infraestrutura. Dali em diante teríamos que ser autossuficientes pelos próximos mil quilômetros. No posto de combustível pegamos informações com um caminhoneiro, mas das poucas palavras que entendemos, uma foi sobre a condição da estrada: “нормальный”, disse ele, que significa normal. Normal só se para ele!

A estrada de inverno que liga Mirny a Ust-Kut é conhecida por “estrada de floresta”, pois cruza, em sua maior parte, florestas de taiga. Nós fizemos os mil quilômetros em cinco dias e cruzamos com muitos caminhões. Quando eles se enfileiravam significava que nos aproximávamos de mais um trecho crítico. É que com a chegada da primavera, o sol forte derretia o gelo compactado e a água, em partes, representava um rio. A pista ficava tão lisa, que fez nosso carro derrapar e girar 180 graus sem que pudéssemos controlá-lo. Era até perigoso tombar o carro. Aliás, haviam caminhões tombados no caminho.

Os congestionamentos aconteciam nas partes estreitas da estrada ou subidas e descidas. Além da pouca largura para passagem de dois veículos, havia um outro complicador: pelos carros passarem em sua maioria pelo trilho central, as laterais ficavam mais altas, causando uma inclinação. Pelo gelo estar tão liso os veículos deslizavam para o centro da estrada, dificultando que dois caminhões se cruzassem em sentido contrário. As vezes eles só não se batiam por milímetros, mas muitas vezes vimos arranhadas e batidas. Se um caminhão gigante daqueles escorregasse sobre o nosso carro, teríamos grandes prejuízos.

As paradas de caminhoneiros estavam sempre lotadas. Numa delas fizemos amizade com um grupo deles e fomos convidados para comermos “alenina”, carne de rena crua congelada, regada a muita vodca. Depois serviram um refogado de rena e todos tiravam seu pedaço com a mão direto da panela. Antes de irmos embora nos presentearam com mais um pedaço de carne da rena, que virou ensopado no próximo dia.

O que nos surpreendeu foi que, apesar das grandes dificuldades das estradas de inverno, aqueles caminhoneiros enfrentam tudo numa boa. Houve um que havia capotado e ao pararmos para tirar uma foto, nos deu uma sacola de legumes e frutas (carga do caminhão tombado). Ele falou: “isso nós desviramos rapidinho e a viagem continua!” Outro descreveu o que havíamos passado como RUSSIA EXTREME, Rússia Extrema em português. Para nós até poderia ser, mas para eles era vida normal.

Foi nessa etapa da viagem que tivemos uma comemoração diferente, que brasileiros nunca imaginam ter. Depois de dois meses e meio em temperaturas negativas, nosso termômetro marcou pela primeira vez positivo. Foi também ali que passamos a ver a água em estado líquido novamente na natureza. Com o aumento da temperatura, nossa geladeira desligada desde o natal de 2015, colocamos para funcionar.

O motivo de todo aquele movimento de caminhões nesta estrada de inverno deve-se a essa região da Sibéria ser uma das mais ricas em recursos naturais, principalmente gás, petróleo e madeira. A cidade de Ust-Kut é um dos principais pontos de escoamento dos recursos, que partem dali via porto no rio Lena ou via ferrovia, para o restante da Rússia.

O nosso carro estava imundo! Precisávamos dar um trato nele. Quando achamos uma lavação o seu dono queria nos cobrar trinta dólares para fazer o serviço. Nada barato para o nosso orçamento. Mas o carro estava tão sujo que não tínhamos como seguir assim. Negociamos por vinte e cinco, mas no final fizemos amizade com Aibek e seu irmão Tayla (naturais do Quirguistão) e ganhamos a lavação, com a condição de que jantaríamos e dormiríamos em sua casa. A proposta foi irrecusável.

Antes de irmos para o extremo frio tínhamos receios sobre ele. Pensamos que os dias seriam nebulosos, com muito vento e tempestades de neve. Pensamos também que os dias seriam curtos. Mas a realidade foi diferente. Praticamente todos os dias éramos presenteados com céu azul e o sol radiante se punha só pelas 18h30. E quase não nevou. Segundo os locais, quando é muito frio, abaixo dos -40C, a chance de nevar é quase inexistente, pois esse frio é muito seco. Mas quando a temperatura sobe, a umidade aumenta e as nevascas voltam a acontecer. Aconteceu quando chegávamos próximo ao lago Baikal. Pegamos vários dias de neve, que dava vontade de ficar em baixo das cobertas assistindo filme. Nesses dias é até melhor “ficarmos em casa”, pois as estradas se tornam perigosas.

Quando chegamos novamente na Rodovia Transiberiana, dobramos a esquerda sentido Irkutsk, percorrendo uma paisagem bem diferente. O gelo e a neve já haviam derretido e podíamos ver os campos secos.

Irkutsk foi fundada em 1661 como posto avançado para cobrança de impostos sobre peles vendidas pelos indígenas da região. Posteriormente se tornou o centro administrativo e comercial do leste da Sibéria, comercializando pele e marfim com a Mongólia, Tibet e China em troca de seda e chá. Durante o século 18 a cidade foi um ponto importante para as expedições que partiam dali para explorar o extremo norte e leste do país, incluindo o Alasca, que na época pertencia a Rússia. Em 1898, com a chegada do primeiro trem pela ferrovia transiberiana, a cidade se tornou um dos principais pontos de parada da linha.

Nosso plano era aproveitar a infraestrutura da cidade para nos reestruturarmos pós-inverno. A principal parada foi na mecânica do Sasha, também landeiro, que nos ajudou a fazer uma boa manutenção no Lobo. Retiramos os vidros duplos que não eram mais necessários, trocamos o para-brisa que estava com trincas por todos os lados, reconectamos o snorkel que havia sido desativado, checamos os óleos, trocamos os filtros, arrumamos o painel elétrico da geladeira que estava com mau contato, arrumamos a luz externa, apertamos as fechaduras do teto, trocamos as poli buchas do eixo, as buchas da barra de torção, uma bucha da barra de direção, engraxamos e, além de tudo isso, o Sasha percebeu uma folga grande no cardan dianteiro. Era uma cruzeta que estava prestes a se romper e tivemos muita sorte que isso não aconteceu na Latitude 70. Outra detalhe que precisávamos resolver na cidade era o visto para a Mongólia, mas este não é mais necessário para brasileiros, desde setembro de 2015.

Prontos, partimos para o lago Baikal, seguindo as dicas do Sasha, que conhecia muito bem a região. Primeiro visitamos Listvianka, uma pequena cidade que se situa no encontro do lago Baikal com o rio Angara. Segundo nosso livro guia, uma visita ao lago não é completa sem comer o peixe Omul, um parente distante do salmão. E após presenciarmos um pôr-do-sol incrível, com sol, chuva e neve ao mesmo tempo, já acampados num pequeno porto, experimentamos o peixe defumado quente. Saborosíssimo. Ainda mais acompanhado por pão preto com manteiga e cerveja gelada.

Os próximos dias passamos mais ao norte, onde fizemos um circuito por uma região de campos que proporcionou belos acampamentos. Tínhamos o sonho de dirigir sobre o lago Baikal congelado, mas chegamos tarde. O gelo estava derretendo e apesar de termos visto centenas de pescadores com seus carros lá no meio do lago, fomos desaconselhados por todos que perguntamos se ainda era possível entrarmos com nosso carro. Talvez até fosse, mas o risco era muito grande e não tínhamos apenas um carro a perder: tínhamos nossa casa, nossos equipamentos, nosso projeto de vida que poderia afundar por 1.642m até repousar no fundo deste, que é o lago mais profundo do mundo.

Mas as experiências que tivemos ficando nas margens do Baikal foram magnificas o suficiente. Caminhamos sobre o seu gelo, branco devido a uma nevasca recente (lembrava o Salar de Uyuni) e numa de suas praias conhecemos um novo esporte: o ice sailing, “barcos a vela” sobre esquis que podem atingir 100km/h de velocidade. Subimos com o Lobo em morros de onde tivemos vistas espetaculares e cruzamos por vilas tradicionais com uma grande quantidade de madeira usada nas casas e cercas. A chegada da primavera também nos deu a oportunidade de estrearmos nosso chuveiro desativado por todo o inverno e abrimos a temporada 2016 de voos de paramotor.

Deixamos o lago Baikal com vontade de conhecer mais, mas nosso visto russo estava prestes a expirar e chegou a vez de explorarmos o próximo país.

 

Veja mais detalhes sobre esse trajeto em:

 

Itinerario percorrido

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Fotos

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