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Diário de Bordo 40 – Quirguistão

(21/08/2016 a 19/09/2016)

A partir do século 10 e principalmente sob a influência das incursões mongóis rumo ao oeste no século 13, povos nômades da Sibéria migraram para o sul e encontraram nas montanhas da Ásia Central o local perfeito para se estabelecerem. As montanhas, que ao mesmo tempo proporcionavam pastagens para seus animais, eram uma proteção natural contra possíveis invasores. Hoje, nesta região, vivem seus descendentes, o povo quirguiz, cuja nação é chamada de Quirguistão.

O Quirguistão foi o primeiro país da Ásia Central a conseguir a independência da União Soviética e, assim como seus vizinhos, herdou uma política instável. O presidente Askar Akayev, que estava no poder desde 1990, era acusado de abuso de poder, nepotismo, reprimir a oposição e corrupção. Em 2005, insatisfeitos, os quirguizes foram as ruas protestar e iniciaram a Revolução das Tulipas, que depois de muitos conflitos, mortos e feridos, derrubou o presidente. Seu sucessor Kurmanbek Bakiev não seguiu um caminho diferente, com altos índices de corrupção, abuso de poder e até assassinatos de membros do parlamento durante o seu governo. Esse cenário político culminou em mais uma revolução em 2010, mais mortos e feridos e por final, na fuga do presidente para fora do país. Em meio a essas duas revoluções, devido a fronteiras mal desenhadas entre os países da Ásia Central (ainda herança da era de Stalin), o Quirguistão também enfrentou conflitos étnicos com seus vizinhos uzbeques, cujas terras foram designadas como Quirguistão. Mas apesar de um passado turbulento, hoje, é um país tranquilo, com uma população humilde e hospitaleira. Se para nós brasileiros ele é um tanto desconhecido, os europeus já o descobriram há muito tempo, fazendo do país um destino para mochileiros.

Quando deixamos o Cazaquistão e entramos no Quirguistão, a paisagem mudou drasticamente. As terras áridas deram lugar ao verde e uma grande massa de água surgiu a nossa frente. Era o Lago Issik-Kul, o maior lago do país, o segundo maior lago de montanha do mundo (depois do Titicaca) e o segundo maior lago salino do mundo (depois do Mar Cáspio). É tão grande que suas praias realmente parecem praias de mar e, falando em mar, lembramos de uma curiosidade que lemos sobre o Quirguistão: este é o país situado mais longe do mar no mundo e todos os seus rios tem uma drenagem fechada, ou seja, não chegam a nenhum oceano. Podemos dizer que estávamos realmente no meio do continente asiático.

Tivemos a oportunidade de acampar em quatro lugares diferentes a beira do lago de águas não tão geladas e nossas praias preferidas foram as da margem sul, com areia, água cristalina e pouco desenvolvimento. O mais extraordinário sobre o Issik-Kul é que ele é rodeado pelas Montanhas Tian Shan e em algumas horas é possível deixar as suas praias com temperaturas agradáveis e dirigir para as altas montanhas com temperaturas abaixo de zero.

As montanhas Tian Shan abrangem oitenta por cento do território quirguiz e sabendo disso, planejamos fazer uma caminhada na região de Karakol (veja o post completo de nossa incrível caminhada aqui). É interessante que em todo o Quirguistão, entre as montanhas rochosas novas, há montanhas mais antigas de barro, coloridas e esculpidas pela erosão. O resultado dessa combinação: paisagens exóticas e fotogênicas.

Quando estávamos em Karakol e conversamos com outros viajantes, fizemos uma descoberta valiosa: em alguns dias, ao norte do Lago Issik-Kul, mais precisamente na cidade de Cholpan-Ata, iriam acontecer os Jogos Mundiais Nômades 2016. Jamais havíamos ouvido falar desses jogos, mas pelas competições bizarras e diferenciadas que seriam praticadas, se pareceram imperdíveis. Ajustamos os planos e rumamos para lá. Dos seis dias, participamos de três e descobrirmos esportes até então inimagináveis para nós (veja aqui o post completo sobre os Jogos Nômades 2016).

Depois dos jogos fomos para a capital Bisqueque em busca de infraestrutura para trabalhar e para solicitar o visto do Uzbequistão. Podemos dizer que nos dois primeiros anos de expedição ficamos mal acostumados na questão de vistos, pois praticamente não precisamos deles. Os únicos países que os exigiram foram os Estados Unidos, para o qual fizemos antes de sair de casa e Canadá, que solicitamos em Los Angeles, Estados Unidos. Mas para a Ásia Central precisaríamos de vistos para todos os países e se as informações que encontramos na internet quando ainda planejávamos a viagem fossem mesmo verdadeiras, estaríamos em maus lençóis, pois dizia-se que era difícil consegui-los, especialmente para quem vinha do leste a oeste. Informações imprecisas. Para nossa surpresa, todos os vistos da Ásia Central foram muito fáceis de fazer. O mais chato foi o do Uzbequistão, que exige uma carta convite, a qual solicitamos com antecedência em Almaty (Cazaquistão) através de uma agencia de turismo. Com a carta convite em mãos, em Bisqueque, nos deram o visto uzbeque no mesmo dia e estávamos prontos para seguir viagem.

Devido ao relevo ser bastante montanhoso, as estradas do Quirguistão serpenteiam por entre vales íngremes e tivemos que cruzar muitos passes acima dos 3.000m de altitude. Os passes e estradas difíceis tornam possível de se viajar no interior somente durante o verão. Contornamos centenas de curvas e após cada uma delas, víamos mais uma exuberante paisagem.

Uma dessas imagens incríveis que se descortinou em nossa frente foi quando subimos até 3.000m no meio de verdes campos e avistamos o lago Song-Kul ao centro. Um lugar maravilhoso, que era um colírio para nossos olhos. Desde tempos antigos as altas montanhas atraem pastores, que deslocam seus rebanhos do vale para lá com o intuito de aproveitar as pastagens abundantes oferecidas durante o curto verão. Mas mesmo na temporada mais quente pode fazer frio e nevar no Song-Kul. Nós pegamos, no final de agosto, -3.4oC durante a noite e um pouco de neve durante o dia.

No segundo dia acampados as margens do lago, com sol, montamos nossa canoa e remamos por suas águas cristalinas e rasas, cheias de algas e habitadas por muitos pássaros. O passeio terminou com o convite de um local para tomarmos chá em sua yurt. Além do chá, nos ofereceram o kymyz, leite de égua fermentado típico da Ásia Central, preparado numa bolsa especial, feita de couro.

Sem saber muito sobre o Quirguistão, pensávamos que esse país possuía uma cultura similar a da Mongólia, mas descobrimos que não, pois apesar deles também serem nômades, os quirguizes são nômades apenas no verão. Antes do inverno regressam para os vales onde vivem em vilas e casas. Quando nós baixamos para o vale, por estarmos no final do verão, encontramos muitos pastores e seus enormes rebanhos de ovelha voltando para casa. Era lindo de se ver, mas nos entristecia um pouco, pois era sinal de que o inverno se aproximava.

Ao sul do Quirguistão chegamos a uma altitude de apenas 700m, onde localiza-se o fértil Vale Fergana, que envolve tanto o Quirguistão, quanto o Uzbequistão (local de conflitos étnicos entre os dois países) e nesse trajeto tivemos mais um motivo para comemorar – o Lobo completou 300.000km de estrada. Parabéns amigo guerreiro!

A cidade que conhecemos ao sul se chama Osh e é a cidade mais antiga do país, aliás, um dos assentamentos mais antigos de toda a Ásia. Estima-se que Osh possui mais de 3000 anos de existência. Foi uma das cidades mais importantes na produção da seda e um dos principais pontos de passagem da rota por onde a seda era transportada. Hoje é conhecida como o ponto de início da Rodovia Pamir, que cruza as montanhas de mesmo nome e termina na cidade de Khorog, no país vizinho Tadjiquistão. Era para lá que nos deslocaríamos na sequencia. Em Osh comemos deliciosos shashlyks, o churrasquinho centro asiático.

Quando chegamos próximo a fronteira com o Tadjiquistão, nossos queixos caíram mais uma vez. Foi após uma daquelas curvas, que depois de contorna-las apresentavam mais um lugar maravilhoso. Dessa vez demos de cara com um paredão de montanhas nevadas muito altas, lindíssimas, que fazem parte da Cordilheira Pamir. Antes de cruzarmos a fronteira, visitamos um dos lugares mais lindos de todo o Quirguistão, a base do Pico Lenin, que possui 7.134m de altitude. Ali conhecemos os mochileiros Sebastian (alemão) e Alessandra (inglesa), com quem tivemos a oportunidade de acampar e fazer uma lindíssima caminhada (12,5km ida e volta) pela região. O pico Lenin é considerado uma das montanhas de 7.000m mais fáceis de escalar no mundo e por isso atrai anualmente centenas de escaladores. A temporada 2016 já havia terminado, o acampamento base estava vazio e tivemos o lugar praticamente só para nós, mas já fazia muito frio.

28 dias passaram voando por essas bandas. Mas também, com tanta coisa bonita para se ver, a sensação é de que os dias passam mais rápido. Como nosso visto estava prestes a expirar, tivemos que deixar o Quirguistão, mas não tínhamos motivos para ficarmos tristes, pois o país da sequencia hospeda uma das rodovias mais bonitas do mundo, a Pamir e era para lá que seguiríamos!

Veja mais sobre o Quirguistão nos posts a seguir:

3 dias de caminhada nas montanhas do Quirguistão;

Jogos Mundiais Nômades 2016 – Quirguistão;

Uma competição muito bizarra.

 

Itinerário percorrido

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Fotos

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