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Diário de Bordo 43 – Uzbequistão

(22/10/2016 a 05/11/2016)

Um banho de arquitetura.

Nós já havíamos escutado muito por outros viajantes sobre as fronteiras do Uzbequistão, que são um tanto complicadas, então chegamos na borda (Denau) preparados psicologicamente para qualquer coisa. Mas nada nos prepara o suficiente para ver quatro soldados ao mesmo tempo dentro de nosso carro, ou melhor, nossa casa, revirando centímetro por centímetro sem podermos fazer ou falar nada. Papéis, livros, câmeras, dinheiro, fotos, comida, roupa, computadores, arquivos, HDs externos e tudo mais que possuímos eram meticulosamente averiguados. Este é um país muito fechado, possui controle sobre a mídia e principalmente sobre sua população e quem visita o país. Em nosso carro, os soldados procuravam por drogas, remédios que possuem codeína (são estritamente proibidos), dinheiro (além do declarado no formulário da aduana), pornografia ou qualquer material impresso censurado. Fomos revistados por quase duas horas e os soldados só pararam porque escureceu e provavelmente estavam trocando de turno. Mas dos males o menor, saímos ilesos! No meio de uma bagunça enorme dentro do Lobo, fomos liberados para entrar oficialmente no Uzbequistão.

Nos países até então visitados Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão a grande atração foi a natureza com suas estepes, montanhas, lagos, vales e cânions, mas no Uzbequistão o que mais se destacou foi a arquitetura de suas cidades. Situadas numa posição estratégica, no cruzamento das rotas de comércio entre a China e a Europa – a chamada Rota da Seda – cidades como Samarcada, Bucara e Khiva se tornaram influentes e algumas delas entre as mais ricas da Ásia Central. Status que durou até o século 13, quando foram saqueadas, destruídas e dominadas por Genghis Khan.

Então após o domínio do exército mongol, a região passou por uma instabilidade e diversas tribos passaram a lutar pelo poder. Foi nesse cenário que emergiu Timur (Tamerlão), que com gana similar a de Genghis Khan, construiu um império poderoso. Junto ao seu exército ele conquistou o oeste da Ásia Central, a Pérsia, o Cáucaso, a Mesopotâmia, a Ásia Menor, o norte do Mar de Aral, invadiu Bagdá, Damasco, Déli, a Rússia e quando almejava invadir a China, morreu. Timur era conhecido pela brutalidade e suas conquistas eram sinônimos de genocídios. Os únicos poupados eram artistas e estudiosos e foi através da habilidade dessas pessoas que Samarcanda, Bucara e Khiva (além de outras) foram reconstruídas durante os séculos 14 e 15.

Nós conhecemos essas três cidades que são verdadeiras obras de arte da arquitetura. Visitamos imponentes mesquitas, minaretes, palácios, fortes, madraças e mausoléus decorados ricamente com ladrilhos, mosaicos e pinturas. Levamos um banho de arquitetura. Perante tão grandiosas construções e com tantos detalhes, nós nos sentíamos pequenos. E refletíamos como seria tudo aquilo na época do seu auge, quando todas aquelas construções faziam parte do dia a dia, com as caravanas indo e vindo, movimento de pessoas e animais pela cidade e o comércio cada vez mais intenso. Devia ser maravilhoso. Mas ao mesmo tempo que aquilo tudo nos fascinava, ficamos um pouco tristes, pois essas cidades perderam o seu verdadeiro charme quando deixaram de ser palco da vida real e viraram museus ou parques turísticos. Muitas mesquitas não estão mais ativas, os mercados não vendem mais produtos do dia a dia e nas madraças não se ensina mais. O que há dentro desses edifícios são souvenires e mais souvenires, que roubam a atenção de quem os visita, fazendo-os esquecer de apreciar a linda e única arquitetura a sua volta.

Hoje, o imperador Timur, é um herói para os locais. Assim como Genghis Khan é para os mongóis. Mas vale lembrar que a riqueza do seu império foi conquistada através da destruição, saque e massacre de outras cidades no mundo. Para os conquistados, ele é considerado um assassino. Isso nos mostra que na história, sempre houve e sempre haverá dois pontos de vista, a dos dominantes e a dos dominados.

Em nossa viagem geralmente acampamos em qualquer lugar, mas nas duas semanas que passamos em terras uzbeques, a cada três dias tínhamos que ficar numa pousada para registrar nossa passagem. Na verdade dormíamos no carro, mas pagávamos para usar a infraestrutura (banheiro, chuveiro e internet) e principalmente para receber um pequeno papel comprovando que nos hospedamos em tal local, na data tal. Esses registros são obrigatórios e devem ficar junto ao passaporte, pois podiam ser solicitados por policiais a qualquer momento, principalmente na saída do país. Se não os tivéssemos, poderíamos ganhar uma multa ou ter outras complicações com a imigração. Mas ninguém nunca nos solicitou os tais papeizinhos. Sabe lá, melhor prevenir do que remediar. A Lei de Murphy já nos alertava que se não os tivéssemos, os oficiais teriam nos pedido e a encrenca seria certa. Essas são burocracias e controles que ninguém entende. Em nosso ponto de vista isso só gera mais trabalho para o próprio país. Vai entender! Heranças da antiga União Soviética.

Foi numa dessas pousadas que conhecemos Cyril e Armony, casal de franceses que realizava uma viagem de carro pela Ásia. Tínhamos muitas coisas em comum e por isso eles se tornaram ótimos companheiros de viagem. Ainda em Khiva, estocamos ambos os carros com comida, carne e cerveja, e partimos juntos para desbravar o Deserto de Kyzylkum.

Estocar o carro no Uzbequistão significa gastar quase nada. O mercado negro de câmbio uzbeque paga cem por cento a mais do que a cotação oficial, o que faz com que viajar por esse país seja muito barato. Quando trocávamos cinquenta dólares, saíamos com um maço tão grande de dinheiro que até nos sentíamos ricos. Era tanta nota que a carteira foi aposentada e passamos a usar uma mochila para carregar o dinheiro. As trocas aconteciam nas ruas, onde quase todos eram cambistas. A pior parte era conferir o dinheiro em público. No começo nos sentíamos intimidados com todas aquelas notas de mil (1.000 soms uzbeques equivaliam a 15 centavos de dólares), mas com o tempo nos acostumamos com a situação e fazíamos igual aos locais, que contavam despreocupados nota por nota, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Nosso primeiro destino em companhia dos franceses foi na região de Khorezm, uma das regiões mais antigas e históricas dessa parte do mundo. Não é para menos que o delta do rio Amu-Darya foi chamado de “terra das dez mil fortalezas”, pois nele, ainda hoje, sobrevivem ao tempo centenas de fortalezas de barro que possuem mais de 2000 anos. Visitamos três delas: Guldunsun Qala, Koy Krylgan Qala e Ayaz Qala, sendo a última a maior, a mais impressionante e a mais bonita de todas. Principalmente por estarmos lá no pôr-do-sol. Acampamos no meio de suas ruínas: apenas nós, nossos amigos e o deserto.

Foi também nessa região que passamos a meros 1,8km da fronteira com o Turcomenistão, único país da Ásia Central que não visitamos. O plano inicial era dirigir pelo Turcomenistão e a partir dele, cruzar de ferry para o Azerbaijão. Porém pesquisas nos mostraram que essa opção não seria muito boa. No início desse diário citamos que o Uzbequistão é um país fechado, mas o Turcomenistão é mais fechado ainda. O visto é difícil de ser obtido e a lista de pessoas que tiveram visto negado é longa, mesmo que de trânsito. Outro detalhe é que o Turcomenistão possui burocracia semelhante a da China e viajar em seu território (a não ser que se consiga visto de trânsito), somente é possível através de uma agencia de turismo e com um guia o tempo todo ao seu lado, o que torna a viagem muito custosa. Outro ponto negativo de lá é que o ferry, que além de ser caro (duas pessoas + carro = 700 dólares), é inconstante. Lemos relatos de viajantes que ficaram presos no porto, pois já tinham dado saída do Turcomenistão perante a imigração e aduana, mas o ferry não apareceu por dias. Então colocando tudo na ponta do lápis, vimos que visitar o Turcomenistão dessa vez seria inviável e passamos a olhar pela opção do norte, que possuía muitos pros: contornar o Mar Cáspio pelos países Cazaquistão e Rússia. Assim poderíamos visitar a região de Manguistau que nos despertava muito interesse e poderíamos conhecer outros lugares fora da rota comum e mesmo que tivéssemos que dirigir muitos quilômetros, não nos sairia tão caro devido ao baixo custo do diesel no Cazaquistão e Rússia.

Rumamos então para o ocidente do Uzbequistão em busca do Mar de Aral que, devido a ações humanas impensadas, está desaparecendo (CLIQUE AQUI e veja o post onde explicamos sobre o caso do Mar de Aral). Mesmo com frio, chuva e muita lama, não desistimos de nossa missão – encaramos mais de 100km (somente de ida) sobre um terreno que um dia já esteve em baixo das águas do Mar de Aral até o encontrarmos. Além dele, encontramos uma encrenca das brabas: encalhamos as margens do mar, numa espécie de argila pegajosa, que nos deu muito trabalho. Sorte que não estávamos sozinhos! A quatro mãos resgatamos o Lobo, que saiu quase ileso, pois ao reboca-lo, a cinta de reboque estourou e ricocheteou quebrando um dos faróis dianteiros, algumas lâmpadas e a grade.

Nossa vontade era de explorar mais a região. Estávamos dispostos a esperar o tempo chuvoso passar e talvez fazer um voo de paramotor sobre esse mar tão polêmico. Mas os franceses, por questões de visto na Rússia, precisavam seguir e nós ficamos no dilema: ficar ou seguir… Fazia tempo que não tínhamos tão bons companheiros de viagem para quebrar a monotonia de um casal viajante, então decidimos viajar mais alguns dias com eles. Agora rumo ao Maguistau, no Cazaquistão!

Veja mais sobre esse trajeto nos posts abaixo:

Itinerário percorrido

Itinerário Uzbequistão

Fotos

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