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Diário de Bordo 54 – Polônia

(10/05/2017 a 21/05/2017)

 

“A fama dos brasileiros, de andar com pouca roupa e jogar futebol, está espalhada mundo afora. Mas nós não tínhamos a fisionomia que as pessoas esperavam. Decepcionavam-se quando nos viam, pois não éramos como eles imaginavam ser um brasileiro. Muitos nem acreditavam na nossa nacionalidade e ainda teimavam que éramos europeus.” Trecho extraído de nosso livro Mundo por Terra: uma fascinante volta ao mundo de carro.

As pessoas que pouco conhecem do Brasil não sabem o quão diverso o nosso país é. Também não sabem que o Brasil hospeda imigrantes do mundo inteiro, entre os quais houve uma grande miscigenação, principalmente entre europeus, índios e negros. Até brasileiros do Norte e Nordeste desconhecem desse fato. Lembramos que quando visitamos Salvador na Bahia, no final de nossa primeira viagem, muitas vezes fomos elogiados pelos baianos, que diziam que nós falávamos muito bem o português.

No sul do Brasil houve uma grande colonização europeia (italianos, holandeses, suíços, alemães, austríacos, poloneses e ucranianos) e por isso, nós, brasileiros sulistas, possuímos traços europeus. Nossa cidade São Bento do Sul – SC foi fundada por descendentes europeus de famílias oriundas da Bavária e Saxônia (partes do sul da atual Alemanha), Áustria, Prússia (norte da atual Polônia) e Boêmia (atual República Checa). Hoje muitos são-bentenses – incluindo nós – descendem dessas nacionalidades. Algumas famílias conseguiram descobrir de onde vieram seus antepassados, mas outras não, principalmente devido as constantes mudanças das fronteiras da Europa. Regiões que antes pertenciam a um país passaram a ser de outro e assim sucessivamente.

A Polônia, o tema desse diário de bordo, é um exemplo disso. Já foi o maior Estado europeu, quando se uniu com a Lituânia, mas também já deixou de existir e nesse período, suas terras foram divididas entre os impérios da Rússia, Prússia e Áustria. Teve seu território restaurado depois da Primeira Guerra Mundial, foi palco de disputas entre alemães e soviéticos na Segunda Guerra Mundial, sendo um dos principais cenários do Holocausto. Terminou sua trágica história dominada pela URSS até 1989. Só a partir daí que conseguiu ser livre.

Nós estávamos muito entusiasmados em ir para a Polônia. Entramos nela vindos de Dresden, Alemanha, pela região da Baixa Silésia, onde os Sudetos – uma cadeia montanhosa – percorrem mais de 250km ao longo da fronteira com a República Checa. Ficamos muito impressionados com a arquitetura de pequenas vilas que passamos, com seus lindos casarões antigos de pedra, tijolo e madeira (enxaimel). O primeiro destino foi Szklarska Poręba, que é um dos principais acessos para caminhadas e esportes de inverno nas montanhas dos Sudetos.

Os Sudetos são cobertos por densas florestas e possuem formações rochosas interessantes, com pedras que parecem empilhadas. Como adoramos caminhar nas montanhas, entramos no Parque Nacional Karkonoski e subimos até o pico Szrenica (1362m) por uma trilha bem marcada. Depois de um dia inteiro caminhando, 18,8km percorridos e 820m de ascensão, voltamos a base da montanha e nosso dia terminou com pizza e cerveja.

Na sequencia da viagem fizemos uma breve parada para visitarmos a Igreja da Paz em Świdnica. É uma igreja lindíssima, com uma história sensacional, de madeira e com seu interior todo pintado que acomoda 7500 pessoas. Entre 1618 e 1648 aconteceu na Europa a chamada Guerra dos Trinta Anos, uma disputa religiosa entre o Império de Habsburgo e seus aliados Católicos contra as potencias Protestantes. Antes de 1618 o povo de Świdnica era livre para seguir a sua religião evangélica luterana, porém com o início da guerra, eles foram privados dela. O tratado “Paz de Vestfália” colocou um fim nesta guerra e com ele o imperador católico de Habsburgo permitiu a construção de três igrejas luteranas em Jawor, Głogów e Świdnica, porém as igrejas tiveram severas restrições: só poderiam ser construídas fora das muralhas das cidades; torres e campanários não eram permitidos, já que a edificação não poderia possuir aspecto de igreja; e os materiais utilizados poderiam ser somente madeira, areia, palha ou argila, ou seja, materiais que não tem tanta durabilidade. Além disso o tempo de construção não poderia ultrapassar um ano.

Hoje, trezentos e sessenta anos depois de sua construção, a Igreja da Paz de Świdnica é a prova de que as dificuldades estimulam o desenvolvimento e a criatividade. Se o povo não tivesse tantos empecilhos para a construção de seu templo, talvez hoje esta igreja fosse igual as outras. Mas não, ela se tornou um marco de engenharia e arte. Simplesmente fantástica.

Um pouco mais ao norte chegamos em Vratislávia (Wroslaw em polonês). Outro lugar encantador. Quanta vida. Quantas cores. Talvez uma das cidades mais bonitas da Polônia. Enquanto caminhávamos e fotografávamos a cidade, vez ou outra quase tropeçávamos em esculturas de anões que dão ainda mais encanto ao lugar. Eles estão espalhados por toda a cidade e um passatempo dos turistas é tentar encontra-los. Nós poderíamos ter passado dias ali, mas nossa visita foi rápida. Tivemos que regressar 130 quilômetros até Szklarska Poręba, pois esquecemos nosso cartão de crédito no posto de combustível quando abastecemos antes de deixarmos os Sudetos.

A caminho da Cracóvia (Krakow em polonês) fizemos mais duas paradas interessantes. Primeiro para conhecermos a Torre Eiffel de Gliwice, ou melhor, a Torre de Rádio que foi construída em 1935 por alemães e que não é menos interessante que a famosa torre francesa. Ela é considerada a estrutura em madeira mais alta do mundo, com 118m. O fascinante desta obra é que ela não possui conexões metálicas, tudo é de madeira, já que o metal poderia interferir na transmissão da antena de rádio.

A segunda parada aconteceu nos campos de concentração de Auschwitz. Haviam muitas pessoas. Grupos e mais grupos de turistas do mundo inteiro estavam ali para visitarem este tenebroso lugar. E não tinha como não sair de lá chocado, mudo e com uma expressão de tristeza. Relatamos em detalhes sobre Auschwitz num POST chamado “O Inferno de Auschwitz”, CLIQUE AQUI.

Fomos então para a Cracóvia, a antiga capital do Império da Polônia que foi um dos principais centros culturais de toda a Europa. Possui uma arquitetura riquíssima, que por sorte do destino, escapou de ser destruída na Segunda Guerra Mundial. Fizemos do estacionamento da Universidade o nosso acampamento e dali, seguíamos a pé para conhecer tudo.

A Rynek Główny, uma das maiores praças medievais da Europa, é uma das principais atrações da Cracóvia e não é por menos. Não importava para onde íamos durante o dia, ele sempre terminava ali. Sentávamos em uma mureta e assistíamos o movimento das pessoas, carroças, bicicletas, embalados pelos ritmos dos músicos de rua. Houve um dia em que a música estava tão boa que até um mendigo parou para apreciar. Com a garrafa de vodca na mão ele ficou ali assistindo e um leve movimento em seus pés demonstrava que estava curtindo. Ao final deixou sua contribuição aos músicos. Essa atitude comoveu o público e fez com que outras pessoas lhe doassem dinheiro também.

Do topo do Monte Wawel contemplamos uma bela vista do rio Vístula. Neste local encontram-se dois grandes símbolos da Polônia: o castelo e a catedral de Wawel. Ambos foram destruídos durante a ocupação austro-húngara, pois queriam construir hospitais. No local havia também o Museu do querido Papa João Paulo II, que era polonês.

Ao sul do castelo ficava o bairro Kazimierz, lugar de muitos bares e restaurantes. Por entre a vida moderna atual, a presença de sinagogas dava o testemunho da história triste do local. Era o Quarteirão Judeu, onde mais de 65.000 judeus poloneses moravam durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje ainda é possível ver alguns fragmentos do “gueto muralhado”, onde esses judeus foram isolados pelos alemães nazistas com o propósito de controle, terror, exploração e perseguição. Visitamos o Museu Fábrica de Schindler, edifício que ficou conhecido através do filme a Lista de Schindler. O museu conta a história da Cracóvia desde sua tomada em 1939 até a libertação em 1944 pela União Soviética. Durante três horas e meia vimos muitas fotos, vídeos e depoimentos relatando como foi esse período.

Algo interessante na Polônia são os restaurantes populares. São chamados Mlecznybar, ou Bar de Leite em português, e foram criados pelas autoridades comunistas polonesas na década de 60 para oferecer refeições rápidas e baratas aos trabalhadores das empresas que não possuíam cantina. O seu nome deriva do fato dos pratos servidos serem feitos a base de leite e ingredientes vegetarianos (ovos, cereais e farinha), já que na época a carne era racionada. Após a queda do regime comunista muitos restaurares fecharam, mas alguns foram preservados como patrimônio histórico e outros ainda são subsidiados pelo governo para disponibilizar refeições baratas aos mais pobres. Os grandes centros poloneses disponibilizam pelo menos um desses restaurantes e vale a pena visita-los e experimentar a comida tradicional, que é muito saborosa.

Gostamos muito de conhecer cidades, mas nossa verdadeira paixão é pela natureza e a cerca de cem quilômetros ao sul da Cracóvia há uma região que não poderíamos deixar de visitar: Zakopane e as Montanhas Tatra, que formam a parte mais alta da cordilheira dos Cárpatos. Essas montanhas rochosas que se localizam na fronteira entre a Polônia e a Eslováquia possuem mais de vinte picos acima dos 2000m de altitude e contrastam com as baixas planícies do restante da Polônia. O local tornou-se o principal destino de inverno no país, mas os turistas vão para lá o ano todo, pois a natureza é espetacular.

Logo que estacionamos em Zakopane o nosso carro, Lobo da Estrada, passou a chamar a atenção de algumas pessoas. Isso já aconteceu em muitos lugares do mundo e o legal disso é que nos aproxima das pessoas que gostam de Land Rovers ou carros 4×4. O polonês Wojtec veio conversar conosco e logo nos levou para sua casa. Junto com sua esposa Kasia e sua filha Basha, nos ofereceu água, banho, uma bebida destilada fortíssima e dicas da região. Ficamos por horas conversando. Fomos também fazer um tour pela cidade, que possui casas de madeira muito ricas em detalhes, algo bem regional, pois não havíamos visto tal estilo em nenhum outro lugar. Este estilo, na verdade, foi desenvolvido pelo arquiteto local Stanislaw Witkiewicz e muitas de suas obras ainda estão de pé, além de que as construções atuais seguem o seu conceito. Hoje elas são referencia da cultura popular da cidade.

Mas como escrevemos anteriormente, a atração em Zakopane é a natureza e a desfrutamos ao máximo durante uma caminhada de oito horas que fizemos pelas montanhas. Partimos de Kuznice (1013m) e subimos até o Lago Preto (Czarny Staw Ganienicowy) que ainda estava congelado. Dali, continuamos por uma trilha bem íngreme até o passe Karb, de onde tivemos uma vista completa do lago. Tínhamos a opção de continuarmos subindo por uma trilha ainda mais íngreme e cheia de pedras soltas até o pico Koscielec (2.155m) e decidimos encarar o desafio, que teve direito a um encontro com um chamois, uma cabra montesa. Lá em cima, estando nós sozinhos e em completa sintonia com a natureza, tivemos uma vista panorâmica de 360 graus das montanhas ao redor, com o Lago Preto a 500m abaixo de nossos pés. Caminhamos no total 15,7km em 1.142m de desnível.

Estávamos adorando nossas experiências na Polônia e a vontade era de ficar mais, porém um detalhe nos pressionou para seguirmos viagem: nossos 90 dias na Zona Schengen estavam acabando, então precisávamos deixar o país. A caminho da Ucrânia acompanhamos o rio Dunajec, conhecido pelo rafting e fly-fishing e que está rodeado por montanhas cobertas por uma floresta densa e verde. Em cada vila da região havia uma igrejinha de madeira, características da região da Pequena Polônia. Em Debno, a Igreja de São Miguel o Arcanjo, do ano 1460, foi construída sem nenhum prego. Como era domingo e acontecia um casamento na pequena comunidade, só pudemos espiar o seu interior pela fresta da porta (CLIQUE AQUI para ver algumas imagens de seu interior, que era lindíssimo). Em Kwiaton a igreja estava aberta, então pudemos visita-la. Hoje é católica, mas ela foi ortodoxa no passado, o que explica o formato acebolado dos seus domos. Vimos também a igreja de Skwirtne, depois de Ropica Górna e assim fomos seguindo nosso caminho até chegarmos na fronteira com a Ucrânia.

 

Veja mais desse trajeto no post abaixo:

 

Itinerário percorrido

Itinerário Polônia

Fotos

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