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Diário de Bordo 9 – Bolívia 2

(09/10/2014 a 24/10/2014)

Pelo altiplano boliviano…

A primeira coisa que fazemos quando chegamos a uma cidade grande e desconhecida é estacionar, caminhar um pouco, achar um lugar para tomar um café ou um suco e relaxar. Ao darmos esse tempo a nós mesmos, passamos a assimilar melhor o funcionamento da cidade. Em Sucre, não foi diferente. Ainda mais com suas ruas estreitas e muito íngremes (situa-se nas montanhas a +/- 3.000 metros de altitude) onde fazia-se necessário usarmos marcha reduzida, pois em marcha simples, para arrancar, era pedir para queimar embreagem. Por sua situação geográfica e por sua arquitetura colonial bem preservada, esta é considerada uma das cidades mais bonitas da Bolívia.

E logo conseguimos uma boa informação sobre a capital boliviana, que viajantes como nós estacionam seus carros na praça San Roque! Depois descobrimos que essa praça, além de abrigar viajantes com seus motorhomes, é a praça dos namorados, pois há muitos casais que revezavam seus bancos de madeira não tão confortáveis. Num dos dias que estávamos por lá, caminhava de um lado para o outro um cidadão na maior das pintas, usando terno preto, gravata borboleta, cabelo carregado de gel e uma rosa vermelha na mão. Claro que aguardava alguém, mas horas já haviam se passado e nada de ela aparecer. Enfim, acabamos nem vendo o desfecho de sua história. Nesta praça, também, conhecemos um casal de argentinos, Andrea e Fernando, que estavam viajando de carro e passamos horas conversando e trocando informações. Deles, ganhamos uma série colombiana do Pablo Escobar para assistirmos em nosso computador e uma garrafa de um ótimo vinho argentino, Don Valentin, que viemos a tomar alguns dias mais tarde, enquanto saboreávamos uma especial carne de lhama que a Michelle cozinhou utilizando uma receita que ainda tínhamos da Austrália, de estrogonofe de canguru!

Mas Sucre, capital? Não é La Paz? Correto. Sucre é a capital constitucional e La Paz, apenas sede de governo. Sucre, a cidade dos quatro nomes, foi uma cidade decisiva na história da Bolívia. Quatro nomes pelo seguinte: Charcas era o nome indígena do lugar em que os espanhóis construíram a cidade colonial; La Plata, na sequência, foi o nome dado a cidade emergente; Chuquisaca chamava-se na época da independência e Sucre, em homenagem ao marechal da grande batalha que antecedeu a independência do país. A Casa da Independência ainda continua de pé, como um ponto quase que obrigatório de visitação. Estivemos na sala onde, em 1825, a república foi instituída por Simón Bolívar. Ali está pendurado um quadro deste grande libertador, o qual ele mesmo disse ter sido seu retrato mais fiel. Simón Bolívar, nascido em Caracas – Venezuela, era um incansável lutador pela independência da América do Sul. Sua carreira militar começou no movimento de independência da Venezuela, na qual logo tomou comando. Venceu importantes batalhas, que garantiram a independência da Colômbia, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia, tendo o nome deste último, derivado de seu sobrenome.

Outro local de visitação importante é o Museu de Arte Indígena, que demonstra trabalhos em tear lindíssimos, tanto antigos como atuais, feitos pelos indígenas da cultura Jalq’a que vivem no altiplano boliviano. São incríveis os seus desenhos, com inúmeras figuras que dificilmente se repetem e que contam histórias de sua civilização. Dizia um senhor das montanhas para nós, que as mulheres que fazem os teares devem saber muito de matemática para fazer tão lindas combinações com fios.

Enquanto estivemos em Sucre aconteceram as eleições presidenciais do país. Neste dia não estávamos autorizados a dirigir, aliás, ninguém estava, e quem desrespeitasse poderia tomar multa ou até ser preso. Este era o dia das crianças andarem com seus carrinhos de brinquedo pelas ruas da cidade, bem como das bicicletas. Criou-se uma atmosfera muito agradável na cidade. Evo Morales foi reeleito com uma superioridade muito grande em votos.

Nas redondezas de Sucre, Cordilheira de Los Frailes, há muita coisa para se fazer e visitar, principalmente no que tange a caminhadas e visitas as vilas indígenas, com seus mercados de domingo. Nós optamos por algo que nos atraiu fortemente: conhecer Niñu Mayu, um local pré-histórico onde preserva-se pegadas de dinossauros. O caminho de carro até lá já compensou, quando descemos por uma serra muito íngreme que nos levou a lindíssima cratera do vulcão Maraguá. Lá dentro da cratera, achamos um lugar mais alto para nosso acampamento, com direito a bolo de laranja preparado em nosso forninho e café. Tudo o que sonhávamos naquele momento.

Noutro dia, as 5h30 da manhã, quando o sol nascia, espiávamos aquele espetáculo das janelas do nosso carro. As 6h15 levantamos, tomamos café da manhã e descemos até a parte baixa do vulcão, onde se situa o povoado de Maraguá. Dali começou nossa caminhada de 12km (ida e volta) a Niñu Mayu, guiados por uma trilha em nosso GPS. Primeiro subimos toda a cratera até sair do vulcão e depois, num sobe e desce, pelas encostas dos morros, fomos chegando a este lugar tão peculiar.

Os antigos moradores dessas terras, parentes dos que atualmente moram por ali, imaginavam que as pegadas de um dinossauro bípede, de 3 dedos, membro da família Rex, eram de flamingos gigantes. Essas pegadas sobre a lava vulcânica estão tão nítidas que nos deixaram impressionados. Haviam também grandes pegadas de dinossauros quadrúpedes, tipo elefantes e de um tipo armadilho. A caminhada de ida e volta foi puxada devido as subidas e descidas, mas valeu muito a pena. Pode-se também ir de carro em uma boa parte deste trajeto.

Para se ter uma ideia mais precisa de onde estávamos, vejam no Google Earth, as coordenadas 19 03 30 S, 65 25 48 W e afastem o ponto de visão até ter 14km de altitude. Nas bordas deste vulcão é que nós acampamos e ao centro dele fica Maraguá, onde iniciamos nossa caminhada até Niñu Mayu, sob as coordenadas 19 03 48,25 S, 65 28 40,65 W. Não são impressionantes estas imagens de satélite? Há mais uma que gostaríamos que visualizassem: 18 59 02 S, 65 25 23 W – esta é a serra que dá acesso a este local. (Para chegar nestas imagens, copiem as coordenadas completas, ex.: 18 59 02 S, 65 25 23 W e colem-nas no campo de pesquisa que fica ao lado esquerdo superior do programa Google Earth. Caso não tenha este programa, faça o mesmo utilizando o Google Maps e coloque em imagem de satélite)

Na Bolívia é comum a justiça com as próprias mãos. O que nos fez perceber isso foram bonecos pendurados nos postes de luz das cidades andinas. Junto aos bonecos há cartazes com algo escrito alertando sobre ladrões. De acordo com nossas pesquisas, mesmo que o governo não aprove este ato, pequenos povoados e moradores dos subúrbios das grandes cidades agem desta forma para controlar a criminalidade, sendo que o sistema de justiça do país não daria conta de todos os crimes. Em alguns sites de notícias, lemos sobre policiais corruptos, ladrões e outros criminosos serem literalmente linchados e queimados em praça pública. Tampouco nós concordamos com esta forma de punir, pois que nível de conhecimento teria o próprio povo para julgar um ser humano? Mas uma coisa é certa: a segurança no país nos pareceu muito boa. Em nenhum momento fomos intimidados ou algo de nós roubado, mesmo tendo coisas de certo valor no reck sem proteção de cadeados.

Os finais de tarde, dirigindo pelas montanhas da Bolívia, são os momentos mais especiais da viagem. É uma pena que durem tão pouco. Quando chegávamos perto de nosso próximo destino, Potosí, o contorno das altas montanhas, as regiões planas com suas plantações, as pequenas vilas, os pastores com suas cabras e ovelhas davam literalmente um show a parte. Não é a toa que as melhores fotografias são tiradas nesses períodos.

E Potosí sim, tem história. Dá para imaginar uma cidade que se situa a 4.000 metros de altitude, que já fora maior que Paris e Madri? Sim, é verdade e tudo começou no ano de 1544, quando um pastor inca chamado Diego Hualpa, que procurava por uma lhama desaparecida, fez uma fogueira no pé da montanha, conhecida em quechua (língua dos incas) como Potojsi. O fogo, que estava alto, começou a derreter o solo e um líquido cinza e brilhante escorria. Diego logo percebeu que aquilo que havia recém descoberto era algo de grande interesse dos espanhóis, então levou-os até lá. Era prata, pura prata!

Não se sabe exatamente quanto deste metal tão valioso já foi removido desta montanha, chamada agora de Cerro Rico, nos quatro séculos de sua extração, mas um ditado popular diz que os espanhóis poderiam ter feito uma ponte dali até a Espanha em prata e ainda teria sobrado metal para ser transportado por ela.

Se essa história é real ou não, o fato é que os espanhóis, logo que perceberam a riqueza que ali existia, fundaram ao pé do morro a Vila Imperial de Carlos V e escavações imediatamente se iniciaram, desencadeando trabalho escravo dos índios locais e mais tarde, de negros, que também seriam importados para o duro e perigoso trabalho nas minas. Para ter alta produção, escravos com idade superior a 18 anos eram forçados a trabalharem em turnos de 12h. Eles permaneceriam embaixo da terra por quatro meses, vivendo, comendo e dormindo sem poder ver a luz do sol. Estima-se que nos três séculos da colônia, mais de oito milhões de escravos perderam suas vidas neste trabalho desumano. A prata extraída das minas era transportada por lhamas até Arica (Chile) e Callao (hoje Lima – Peru), de onde iam para a Espanha. A demanda da prata fez com que a população de Potosí rapidamente crescesse para 200.000 habitantes, fazendo dela uma das maiores cidades do mundo na época. Nosso livro guia Lonely Planet diz que um político descreveu: “Potosí cresceu no pandemônio da ganância aos pés de riquezas descobertas por acidente”. Mas futuras crises aconteceram e a cidade decaiu para 10.000 habitantes e até hoje não se recuperou totalmente. Em 1987, a Unesco declarou Potosí um patrimônio histórico da humanidade reconhecendo sua rica e trágica história, bem como sua linda arquitetura colonial. Hoje Potosí possui cerca de 190.000 habitantes (dados 2009).

O ponto alto para visitação nesta cidade é a Casa da Moeda, na verdade, a segunda casa da moeda que Potosí teve. Para sua construção, que envolve uma quadra inteira (7.570m2) foram gastos mais de 20 milhões de dólares. São 15.000 m2 de aérea construída. Além do processo de fabricação da moeda, com maquinário em madeira (importada da Áustria) movido a tração animal, pudemos ver muitas obras de arte feitas por indígenas anônimos e um importante acervo de moedas de todo este período. Vale a observação de que as moedas passaram a ter tamanhos padronizados, pois anterior a isso, tendo somente o valor inscrito em sua face disforme, ao passar de mão em mão sua prata era cuidadosamente roubada e as moedas ficavam cada vez menores.

Haviam se passado semanas desde que voamos pela última vez em nosso paramotor. Mas também, estávamos a bastante tempo acima dos 3.000 metros de altitude, o que dificulta em muito o voo devido a baixa pressão atmosférica e a pobreza de oxigênio, ocasionando combustão precária e baixa potência do motor. Por outro lado, o sonho de voar num lugarzinho em especial nessas alturas foi um dos impulsionadores a ingressarmos neste esporte. Um lugar que desejávamos muito voar, mas não tínhamos certeza se conseguiríamos. É o Salar de Uyuni, a maior planície de sal do mundo, com 10.582m2, situado ao sul da Bolívia, estando a 3.670 metros de altitude acima do nível do mar.

Não foi a primeira vez que viemos ao Uyuni. Este lugar, que é indescritível pela sua magnitude e beleza, por ser inóspito, árido, desolado e salgado, foi nosso quintal por exatos 4 dias e 3 noites. Durante esse tempo, o que mais vimos era a brancura do sal, intercalada por algumas ilhas repletas de cactos milenares. Vimos apenas um animal nativo, a Viscacha, um pequeno roedor parecido com um coelho de rabo grande, pertencente a mesma família das chinchilas. Os pôres-de-sol no salar também foram algo a parte, talvez os mais lindos que já havíamos visto em nossas vidas.

Quanto ao sonho de voar sobre o Salar de Uyuni, a primeira tentativa ocorreu logo na manhã do terceiro dia. Apareceram alguns imprevistos mecânicos, mas logo os resolvemos e corremos para o primeiro voo (Roy). Infla a vela, vira, acelera e corre… mas corre o que dá!!! O vento estava fraco, o que dificulta na decolagem, mas depois de algumas dezenas de metros vencidos, a vela lentamente o tira do chão com muito esforço e apesar de já estar no ar, ganhar altura era algo muito difícil. Foi um voo magnífico, mas um pouco forçado, pois a aceleração do motor tinha que estar no máximo o tempo todo. No quarto dia, quando fomos voar novamente, fizemos algo que, devido a inexistência de poeira no salar, talvez não acarretasse nenhum problema. Tiramos o filtro de ar para facilitar a entrada de oxigênio e assim, melhorar a combustão. Dito e feito, os próximos três voos (Roy 2x e Michelle 1x) foram bem melhores e mais tranquilos. Lá de cima, pudemos apreciar a magnitude deste lugar. Fizemos várias fotos e filmagens aéreas, mas usando apenas câmeras GoPro. Apesar da inexperiência neste quesito, achamos que algumas imagens vão poder ser aproveitadas.

Bom, quatro dias era o limite de uso de nossa caixa d’água sem abastece-la (sem tomar banhos). Então, já ficando com saudades deste lugar exótico e maravilhoso, fomos dirigindo ao norte, ainda pelo sal, com o intuito de sairmos por Tahua, uma pequena vila situada aos pés do Vulcão Tunupa. Mas no caminho, uma surpresa, agradável por um lado e desagradável por outro. Ainda faltando 18km para sair do salar e uma fina camada de água, que provavelmente teria caído nas chuvas das noites anteriores, cobria todo o caminho. E água em contato com o sal, é salmora na certa. Imagina o estrago que isso pode fazer em um veículo que o cruza? Nossa estratégia, que acabou dando certo, foi dirigir a menos de 10km/h. Dessa forma, a salmora espirrada atingia só os paralamas e parabarros. O lado agradável desta surpresa foi que tudo ficou maravilhosamente bonito. Paramos em alguns lugares que definitivamente não se sabia onde ficava a linha do horizonte, entre o sal e o céu. As brincadeiras e as fotos que fizemos valeram as quase três horas que levamos para percorrer esses 18km.

Em Tahua, além de abastecermos nossa caixa d’água, demos um bom banho de rio no Lobo da Estrada e almoçamos carne de lhama servida na praça da vila. Segundo as mulheres locais (povo indígena), carne de lhama é a melhor do mundo.

Bom, agora o destino era La Paz, mas para chegar lá escolhemos as estradas mais vicinais, com muita poeira e buracos, que nos presentearam com paisagens paradisíacas. Passamos ao lado do Salar Coipasa e depois, dirigimos por entre vulcões de tirar o fôlego. Aliás, ao lado direito estava o vulcão Sajama, a maior montanha da Bolívia, com 6.542 metros de altitude e ao lado esquerdo, já no Chile, estavam outros vulcões, como o Guallatire, com 6.061 metros. Foi neste caminho que chegamos a maior altitude de carro nesta viagem, 4.392m, bem quando procurávamos a entrada para uma piscina de águas termais e também, próximo ao local onde dormimos. A esta altura, o frio era garantido, com temperaturas negativas em torno de -9ºC na madrugada, fazendo com que a água de nossa caixa d’água congelasse.

E a viagem continua… La Paz será nosso próximo pondo de parada!!!

 

PS1 – Como curiosidade, há 13 anos e 9 anos atrás fizemos viagens de carro pela Bolívia, passando também pelo Salar do Uyuni. Naquela época, ao contrário de hoje em dia, poucos turistas se aventuravam por essa região. Muitas vezes éramos os únicos inseridos na imensidão da paisagem.

Vejam os links:

 

PS2 – Muito estranhamente, nas estradas entre Sucre e Potosí, passamos a ver muitos cachorros nas estradas. As vezes, mais de dez, a cerca de 100 metros entre eles. E dificilmente estariam dois juntos. Nós pesquisamos sobre isso e descobrimos que esses cachorros, que ficam aparentemente assistindo-nos passar, são alimentados pelos caminhoneiros, que neste ato, estariam fazendo uma oferenda aos deuses pedindo proteção nas estradas.

Itinerário percorrido

Itinerário 9

Fotos

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