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Diário de Bordo 42 – Sudão

Diário de Bordo

(04/08/2008 a 16/08/2008)

A verdadeira África começa aqui!!!

No dia 04 de agosto, segunda-feira, dirigimos sentido ao porto no Lago Nasser – Egito, onde embarcaríamos em um ferry sentido ao Sudão. Tivemos que estar presentes no local já de manhã, mas nossa partida só aconteceu pelas 7h da noite, depois de muita espera e de termos carregado o carro em outro ferry, que é especifico para as milhares de mercadorias importadas pelo Sudão e que chegaria um dia depois que nós. Nossos tíquetes eram para a segunda classe, mas por sermos estrangeiros (o que às vezes ajuda) pudemos ficar em um lugar mais reservado da multidão, ao lado da cabine do capitão. Passamos a noite dormindo no chão duro e cobertos pelas estrelas… No outro dia de manhã o Egito se despediu de nós com uma belíssima vista das ruínas do Templo de Abu Simbel e depois de exatamente 17h de viagem, avistamos as primeiras terras sudanesas.

Outros viajantes e mesmo o nosso livro de viagem descreviam a cidade de Wadi Halfa, porto de entrada sudanês, como uma cidade decadente e um nada no meio do nada. Para nós, a cidade não poderia ser melhor: devagar e desértica durante o dia (calor de quase 50 graus) mas repleta de vida a noite, quando os restaurantes ficam lotados de fregueses; as mulheres do chá estão na rua preparando todos os sabores imagináveis; pessoas disputam um lugar na frente das minúsculas e antigas televisões e outros circulam pra lá e pra cá curtindo o clima agradável nos dando as boas-vindas ao seu país.

O hotel que ficamos era todo de barro e chão de terra. A princípio homens e mulheres não podem ficar na mesma ala do hotel e muito menos no mesmo quarto, mas por sermos estrangeiros, eles abriram uma exceção e nos deixaram ficar todos no mesmo quarto (nós dois e os suecos Cristina e Gustav). O mais curioso é que a noite os quartos são muito quentes e todos retiram suas camas para uma área aberta no centro do hotel e dormem lá mesmo. Foi o que fizemos também, ainda mais que um gato malandro entrou no nosso quarto e enterrou um número 2 bem cheiroso debaixo de nossas camas. O jeito foi pegar um ar fresco!

Outro dia cedo fomos pegar nosso carro que estava para chegar e quando vimos o ferry, levamos aquele susto! Os carros haviam quase desaparecido debaixo das toneladas de mercadorias, das quais muitas estavam estouradas e rolando para todos os lados. O Lobo foi muito útil para eles, pois serviu como parede de apoio para a bagunça, nos custando dois amassados na lataria.

Depois de nosso carro registrado, a única saída foi encarar o deserto… Foram 3 dias de estradas bem ruins e off-road, acompanhados por uma nuvem de poeira que não largava de nossa traseira. A temperatura até o meio dia era tranqüila, mas após este horário, o calor pegava forte e o jeito era procurar uma sombra para relaxarmos, pois não tínhamos vontade de fazer nada, além de beber muita água. Uma das coisas mais frustrantes foi ser acompanhado pelo imenso Rio Nilo e não podermos nos refrescar em suas águas, pois a maioria dos rios e lagos africanos são contaminados por um verme chamado bilarzia. Esse verme, parasita de um caramujo que vive no capim a beira d’água, transmite a doença para humanos que nadem ou tenham contato com o mesmo.

Apesar da imensa beleza e da aventura que foi dirigir no deserto, as melhores experiências que tivemos no norte do Sudão foram em nossos acampamentos. Como seguíamos o Rio Nilo e este é a única fonte de água da região, sempre cruzávamos diversas vilas e em uma das noites, acabamos acampando praticamente dentro de uma. Não demorou nada para que o primeiro curioso aparecesse. O Roy e o Gustav, empolgados para pescar, já foram com uns quatro locais para a beira do rio, enquanto as meninas ficaram no acampamento. Quando os dois voltaram, encontraram os carros rodeados por mais de 30 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Alguns sentaram em nossas esteiras, outros agacharam-se do jeito típico do caboclo do interior, outros mantiveram uma certa distância e assistiram tudo mais de longe. O engraçado é que a maior atração, como geralmente é, não foram os nossos carros e sim, NÓS. Parecia que toda aquela vila estava no zoológico vendo, curiosos, quatro diferentes animais. Eles reparavam em todos os nossos movimentos, riam, cochichavam… e esse entretenimento durou cerca de 3 horas, quando cansados de entretê-los, apelamos educadamente por nossa privacidade. Mesmo não falando a mesma língua, eles nos entenderam e devagarzinho foram voltando para casa, como se o show tivesse terminado. Que experiência!!! Na hora foi um sufoco, mas é a melhor forma de entrar em contato e entender um pouco do povo local.

Não há dúvidas de que a principal atração do Sudão é o próprio país e sua hospitaleira população. E cruzando as pacatas vilas sudanesas, onde mora esse povo tão simples, humilde, trabalhador, simpático e honesto, fica difícil de acreditar que a alguns quilômetros dali, no oeste do país, aconteceu uma das piores guerras da atualidade. Na verdade, a guerra civil sudanesa começou em outro lugar e há 46 anos atrás, quando o governo muçulmano tentou impor a Sharia (Lei Islâmica) provocando uma grande revolta entre o norte, predominante muçulmano e o sul, onde predominam os africanos negros, alguns cristãos, mas na sua maioria pagãos que conservam os seus dialetos tribais. Além das realidades culturais opostas entre as regiões, o descaso do governo perante o sul e a exploração do petróleo foram os causadores de duas grandes guerras (1955-1972 e 1983-2005). Mas quando o sul e o norte estavam entrando em um acordo de paz, foi a vez do oeste rebelar-se, devido também sentir-se isolado das perspectivas do governo. É aí que começa o Conflito de Darfur, que diferentemente das outras guerras, não se tratava de um conflito entre religiões, pois a maioria da população é muçulmana; tratava-se de um conflito étnico-cultural, o qual iniciou-se por motivos políticos e ganhou contornos raciais ao longo dos últimos anos.

A mídia vem descrevendo o conflito como um caso de “limpeza étnica” e de “genocídio”. O governo dos EUA também o considera genocídio (é claro que eles tomariam esse lado, pois não se dão bem com o governo do Sudão), embora as Nações Unidas ainda não o tenham feito, pois a China, grande parceira comercial do governo sudanês, defende o país em todos os fóruns internacionais que abordam o tema (óbvio que com grande interesse na exploração do petróleo sudanês). Como curiosidade, segue abaixo a matéria do Jornalista Johann Hari do “The Independent” divulgada no jornal Folha de São Paulo no dia 8 de outubro de 2005.

“Finalmente, o genocídio no oeste do Sudão está quase terminado. Há um problema, porém: o genocídio está chegando ao fim apenas porque não restam negros para matar ou submeter à limpeza étnica. No esforço para “limpar” o oeste do país de “zurgas” – termo que pode ser traduzido como “crioulos” -, o governo da Frente Islâmica Nacional já exterminou mais de 400 mil deles e expulsou outros 2 milhões de prostitutas. As milícias racistas governamentais, conhecidas como Tarzan, adorariam continuar a matar e devastar, no entanto, os povoados negros já foram todos queimados, e todas as mulheres negras já foram estupradas .O primeiro genocídio do século XXI transcorreu sem transtornos, e os genocidas venceram”.

Apesar de ser sinônimo de guerra civil, fome e escravidão, o verdadeiro Sudão é desconhecido pelo mundo. Poucas pessoas sabem, mas este país possui uma cultura riquíssima e sua história data de mais de 4.000 anos atrás, abrangendo a mais antiga civilização negra da África. Suas terras pertenciam ao Reino de Kush, o qual era muito importante e influente nas relações comerciais com os faraós egípcios e até mesmo com os imperadores romanos, suprindo-os com elefantes, girafas, leões e outras mercadorias exóticas de suas terras tropicais. O legado deixado por esse império é uma impressiva quantidade de sites arqueológicos, como templos, tumbas, palácios e muito mais pirâmides do que o próprio Egito. Pudemos apreciar um pouco desta história na cidade de Karima, onde acampamos a apenas alguns metros das pirâmides mais bem preservadas do país. Elas não chegam nem perto na grandiosidade das Pirâmides do Egito, todavia são de uma beleza e perfeição incomparáveis.

Dali para frente a aventura terminou, já que as trilhas empoeiradas deram lugar as rodovias asfaltadas de ótima qualidade e os pequenos vilarejos transformaram-se na maior cidade do país, a capital Khartoum. Sempre é bom chegar em uma cidade grande e encontrar um pouquinho mais de infra-estrutura, mas é nesses lugares que os nossos gastos aumentam, pois temos que fazer vistos, reabastecer a despensa e fazer manutenções em nosso carro. Dessa vez foi a embreagem, que devido ao constante uso e ao extremo calor, teve seu cilindro mestre danificado, o qual foi encontrado e substituído com facilidade pois Land Rover na África é o que não falta.

Depois de Khartoum, o Sudão começou a mudar completamente. Enquanto que os desertos da Núbia e da Líbia predominam no norte, no sul são as savanas e florestas tropicais que tomam conta da paisagem. Logo avistamos as primeiras nuvens e não demorou muito para pegarmos uma chuvona de despencar o céu. A cada metro que nos aproximávamos da Etiópia, a umidade aumentava e é impressionante o quão verde são essas terras, ainda mais depois de termos viajado quase 5 meses em paisagens predominante desérticas… o verde parece ser infinitamente mais verde e tudo parece ser mais bonito e mais feliz quando a água está presente em abundância.Nosso próximo destino é a Etiópia e se no Sudão começou a verdadeira África, podemos dizer que na Etiópia começou a selvagem África!!!

Álbum: Sudão

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