Um diário de bordo, nos dias em que o imediatismo das mídias sociais tomou conta da comunicação, parece ser algo um pouco fora de moda. Conversamos bastante sobre como compartilhar nossa viagem e decidimos por faze-lo nesse formato. Um dos nossos propósitos na estrada é desacelerar, sem a pressão de “ter que postar” no momento em que tiramos uma foto. Além disso, o diário será um registro para o futuro, para que informações e emoções sejam lembradas. Mas para quem prefere algo mais dinâmico, após cada publicação dos diários, postaremos nas redes sociais algumas dos melhores momentos, mas de forma esporádica e com algumas semanas de atraso.
Partimos de casa numa sexta-feira, as 17:48, e logo paramos para tomar um café na panificadora Pimpão, pois precisávamos conversar. Naquele momento não sabíamos ao certo por quais estradas dirigiríamos ao sul. Essa parada foi essencial para podermos respirar fundo e relaxar, já que os dias anteriores haviam sido de muita correria. Estávamos exaustos após dias intensos preparando o carro e deixando a casa em ordem para que pudesse ficar fechada por meses. Alias, não era só a casa, haviam os negócios, projetos, contatos, boletos, etc… que não poderiam ficar sem planejamento.
Com aquela xicara de café, já tendo desligado a chave geral de casa e com os “problemas” deixados para trás, tivemos aquela sensação que já sentíramos outras vezes: de que o tempo era nosso. E assim, pudemos pensar exclusivamente nos próximos passos.
Quando fomos abastecer, já passava das 19h, tarde demais para ir muito longe. E veio a ideia: que tal dirigirmos 12 quilômetros na contramão do nosso destino e irmos dormir em nosso terreno? Não faz muito tempo que compramos um terreno localizado entre São Bento do Sul e Campo Alegre – SC onde pretendemos construir a nossa casa. Ainda não o havíamos inaugurado, ou seja, ainda não havíamos dormimos lá nenhuma vez. Foi muito legal iniciarmos nossa viagem ali, sermos recebidos pela cachorra da vizinha que apelidamos de Ayla (não sabemos o seu nome verdadeiro) e brincar com ela, atirando gravetos para que possa buscar a toda velocidade.
A Serena estava ansiosa, pois seus novos professores seriam os seus pais – profe Michelle e profe Roy. Naquela noite espalhou pelo carro, o Lobo da Estrada, todo o seu material escolar e fez daquilo o seu primeiro “momento escola” da viagem. Nossa filha tem 5 anos, pelo menos quando partimos, e desde os quatro frequenta a escolinha montessoriana da nossa cidade. Para que conseguíssemos esse tempo para viajarmos, acordamos com a diretoria que ela faltaria o tempo permitido, que é 25% do ano letivo no ano de 2024 e 25% do ano letivo de 2025. Fazendo as contas dos feriados, fins de semana e férias, chegamos ao tempo que determinou a nossa viagem, que será de aproximadamente 6 meses. A professora juntamente com a coordenadora da escola, prepararam uma caixa de materiais e atividades para irmos fazendo ao longo do caminho, caixa que foi lindamente decorada com desenhos de seus amigos que deixarão saudades. O grande aprendizado será na prática e no dia a dia na estrada. Quanta coisa está por descobrir…
O carro não era novidade para nós. Já vivemos nele por mais de seis anos, mas agora viajamos em três e além de todo o resto, o espaço precisava acomodar as coisas da Serena – roupas, brinquedos, material escolar e uma nova cama. Ela já tivera outra cama no Lobo, que ficava pendurada na parede, mas essa já estava pequena demais. A nova foi feita com um sistema de pendurar também, mas necessitava ser maior e já não precisava ter tanta proteção quanto a primeira. A Serena, um pouco relutante com a mudança, amou seu novo cantinho acolhedor.
Descansamos bem naquela noite. Na manhã seguinte, após um café e um último passeio pelo terreno, partimos. Mas ao fechar o portão, a Michelle identificou que vazava diesel do tanque principal. Um problema nada animador para o começo da viagem. Esse foi o primeiro problema de muitos que estavam por vir no primeiro mês de viagem. A gente achava que com os aprendizados de duas voltas ao mundo teríamos minimizado os problemas, mas que nada, eles nos acompanharam e bem de perto.
É preciso estar preparado para os problemas, pois certamente virão. Cabe uma pequena correção aqui: esse já era o segundo problema, pois na noite anterior, ao ligar nosso fogão a gasolina, a bombinha que dá pressão no tanque não estava funcionando e essa peça não se consegue no Brasil. Com uma dosagem extra de graxa, conseguimos faze-lo funcionar, mas o problema voltou a acontecer algumas vezes até que desistimos de utiliza-lo por algum tempo, substituindo ele por um outro fogareiro de acampamento, a gasolina também, porem pequeno, barulhento, de apenas uma boca, que servia mais para quebrar um galho.
Era sábado, as mecânicas estavam fechadas, então fomos viajar para gastar o diesel para que parasse de vazar. Passamos por Mafra e Canoinhas, onde apreciamos o pórtico com entalhes em uma tora gigantesca – um ponto de interesse para Roy, que começou a fazer esculturas em madeira com motosserra e formão. Algumas de suas esculturas podem ser vistas no Instagram @roy.rudnick
Em Porto União entramos na cidade para contemplarmos o rio Iguaçu do alto, que ali separa os estados de SC e PR. Algo simples, próximo de casa, mas que se pararmos para pensar, torna-se grandioso. Algumas das águas de nossa cidade, que nascem no rio São Bento, passam por ali. Elas desaguam primeiro no rio Negro, seguem pelo Iguaçu para caírem no rio Paraná, que as levará até o Atlântico, entre as capitais Buenos Aires e Montevideo. Por curiosidade, em nossa cidade há uma outra bacia em que as águas descem para o outro lado pelo rio Humbolt até o Itapocu, para encontrarem o Atlântico logo ali, próximo a Barra Velha – SC. Coincidência ou não, mas foram exatamente esses rios que Cabeça de Vaca, o viajante das Américas, no final do século 16, usou como referencia para chegar a Assunção no Paraguai, onde fora nomeado governador. Como explicar tanta coisa para nossa filha de apenas 5 anos?
Nós havíamos feito poucas viagens para o Oeste de Santa Catarina. Geralmente as viagens no estado acontecem para as cidades litorâneas. E ficamos contentes ao ver como ainda existe Mata Atlântica, com morros e muito sobe e desce. Passamos por Abelardo Luz que possui o Parque das Quedas, um conjunto de sete cachoeiras no rio Chapecó e tocamos para o Sul do estado para nos surpreendermos com a história da cidade de Itá.
Dá para imaginar mudar uma cidade de lugar? Em Itá, que se situa as margens do rio Uruguai, isso foi uma realidade. Uma nova Itá foi construída a partir de 1981, pois a cidade velha ficaria submersa devido aquela parte do rio ser muito favorável para a construção de uma usina hidroelétrica. As famílias que ali viviam foram indenizadas e apenas algumas construções foram reconstruídas na nova cidade, o resto fora tudo destruído e removido, para que os escombros não oferecessem risco para os geradores da usina.
As únicas coisas que ficaram em loco da cidade velha, para comprovar a historia, foram as torres da igreja, que antes das águas da represa subirem, foram concretadas por debaixo, para que ficassem protegidas em meio ao alagado. Essa igreja, que estava em uma das partes mais altas da cidade, ficou com apenas seis metros dentro d´água, mas a represa, desde o leito original do rio, subiu mais de cem. Conhecemos algumas partes da cidade, como a usina, essas torres meio submersas e duas casas que foram transportadas para a cidade nova e que hoje hospedam museus.
Ametista do Sul, já no estado do RS, como o nome diz, é a cidade das pedras ametista. Nela encontra-se a maior mina dessa rocha do mundo. É uma cidade que cresceu por conta da mineração. A principal igreja da cidade (São Gabriel), para se ter uma ideia, sustenta em suas paredes cerca de 40 toneladas de pedras ametista. Muitas coisas lá são pintadas em roxo, representando a pedra nome da cidade, tanto que nós brincávamos com a Serena de que até o verde é roxo por lá, quando vimos um jardim florido e ali as folhas eram roxas também. Quanto as pedras, quanto mais intenso o roxo, mais ferro ela contém e mais valiosa é. O tamanho dos cristais também dita o seu valor e quanto maiores, mais valiosa a pedra. A ametista de maior valor extraída na cidade possui 2,5 toneladas. Visitamos uma mina desativada e um museu particular muito interessante, que possui uma coleção de 2.000 pedras preciosas, tanto nacionais como internacionais.
Seguindo mais para o sul no RS, a vegetação deu lugar para as grandes fazendas de agricultura. As famosas coxilhas, que seriam as colinas arredondadas agriculturáveis. Dirigimos até Panambi e ali passamos dias agradáveis na companhia dos amigos Flavio, Danila e os filhos Isabela e Matteo Janke. Essa é uma cidade de pequeno porte que, segundo pesquisas, possui uma das melhores qualidades de vida do país. O Flavio é chef de cozinha de mão cheia e possui um restaurante dentro de um moinho muito antigo da cidade, com mais de 100 anos.
Essa parada de alguns dias valeu para que pudéssemos dar uma geral em nossa roupa suja, e, também, para concertar aquele vazamento no tanque de diesel. Um amigo do Flavio, o André, cedeu uma rampa de um dos seus postos de combustível, bem como a ajuda de um dos seus funcionários. Trabalhamos muito, mas demos conta do problema.
Uma das atividades que a Serena mais gostava de fazer em casa eram as aulas de equitação com o professor Binho. Panambi lhe deixou ótimas lembranças, pois além da amizade que fez com a Isabela, Matteo e sua cachorrinha Schne, matou a sua vontade de andar a cavalo numa festa de aniversário em uma fazenda, onde quatro cavalos estavam encilhados para os visitantes. A festa era da esposa do André, que nos ajudou com a rampa para concertar o tanque de combustível. Comemos tanta comida boa em Panambi que já estávamos preocupados se iriamos nos adaptar à rotina de uma vida simples na estrada novamente.
A caminho da Argentina, ainda pudemos conhecer um dos patrimônios culturais mundiais da Unesco, o das Missões Jesuíticas do RS. São diversos aldeamentos indígenas construídos nos séculos 17 e 18 no Brasil e países vizinhos, sob o comando de padres jesuítas, com o intuito de catequizar os índios. Essa foi uma época em que a igreja católica perdia força na Europa devido ao movimento Protestante, então eles foram em busca de novos fieis. No Brasil foram construídas sete reduções, como são chamadas essas missões e a mais preservada em terras brasileiras encontra-se em São Michel das Missões.
É impressionante o que esses padres, juntamente com os índios guaranis, construíram. Primeiro que os padres sofreram retaliações pelos chefes indígenas, pois esses temiam a perda de poder. E a igreja pregava o casamento e não a bigamia, que era o costume dos índios da época. Por segundo, as construções eram enormes, feitas todas com paredes de pedras, todas escavadas, de arquitetura espanhola. Haviam esculturas de santos feitas em madeira, sinos pesadíssimos, fundidos por eles mesmos nas reduções.
Na segunda metade do século 18, a presença dos jesuítas no lado de cá do rio Uruguai (atual Brasil) recebeu um duro golpe. Esses padres haviam conquistado grande autonomia politica e econômica, através de suas catequeses, o que não agradava seus governantes, pois ameaçava seu poder. Foi então que aconteceu o Tratado de Madrid, um acordo entre a Espanha e Portugal em que estes países estariam trocando a região das Sete Missões pela cidade de Colônia de Sacramento, no atual Uruguai, que então pertencia a Portugal.
Portugal, que passou a ser dono dessas terras, determinou que do dia para a noite todos se retirassem para o outro lado do rio Uruguai, iniciando então a Guerra Guaranítica, tendo como opositor o líder indígena Sepé Tiaraju, que não aceitou tal imposição. Ficou conhecida a sua frase, que disse aos portugueses: “essa terra tem dono”. Mas a guerra foi um massacre, tamanha a diferença de poder de fogo de cada lado e Tiaraju foi morto no dia 07 de fevereiro de 1756 em uma emboscada onde hoje situa-se o município de São Gabriel, no RS. Conta a história que quando ele ainda estava vivo, foi queimado com pólvora e sua cabeça cortada, para servir de prova de sua derrota. Na batalha de Caiboaté, três dias após a morte de Tiaraju, uma força combinada de 3.000 soldados portugueses e espanhóis aniquilara cerca de 1.500 índios guaranis.
Nós estivemos por uma semana nessa região, pois aguardávamos uma encomenda que vinha pelos correios, um novo inversor que havia queimado em nosso carro. Estivemos em São Miguel das Missões, Santo Ângelo, São João Batista e São Luiz Gonzaga. Nesse meio tempo, no município de Caibaté, passamos duas noites acampados em frente ao Santuário de Caaró. O local homenageia a morte dos santos mártires missioneiros Roque Gonzalez de Santa Cruz, Afonso Rodrigues e Juan del Castillo, ocorridas em 1628 pelos próprios índios guaranis. Em 1934 o Papa Pio XI declarou a beatificação dos Três Mártires das Missões e em 1988 o Papa João Paulo II canonizou-os declarando-os santos oficialmente. Ao fundo da igrejinha há uma fonte de água que diz-se ser sagrada, onde pode-se inclusive banhar-se nos chuveiros de água gelada.
Quando a nossa encomenda chegou, botamos o pé na estrada e ao dirigir por São Luiz Gonzaga, fiz questão de tocar uma música regionalista que eu lembrava desde que tinha 20 anos, pois meus pais tinham um disco vinil de Pedro Ortaça, nascido nessa cidade. A musica se chama “Milonga” e é possível de escuta-la no YouTube. Outra poesia, que nessa época eu declamava de cor e salteado, era “Bochincho” de Jayme Caetano Braun, também nascido em São Luiz Gonzaga, que também vale muito a pena escuta-la no YouTube.
E assim fomos seguindo nosso rumo para Argentina, para cruzar, de balsa, o rio Uruguai na fronteira de Porto Xavier.
Jayme Caetano Braun resumiria bem o espírito dessa travessia em sua poesia:
“Eu me dei conta de repente
Eu não vou ficar para semente
Mas gosto de andar no mundo!
Me esperavam lá nos fundos
Eu saí na porta da frente
E dali, eu ganhei o mato
Abaixo de tiroteio
Ainda escutava o floreio
Da cordeona do mulato
E pra encurtar o relato
Eu me bandeei para o outro lado
Cruzei o Uruguai a nado
Que o meu zaino era um capincho
E a história deste bochincho
Faz parte do meu passado”.