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Diário de Bordo 2 – Misiones, Corrientes e Salta

Os vinte dias iniciais de viagem no Brasil serviram como um aquecimento para o retorno a estrada. Como ficamos destreinados rápido! Agora, além de morar dentro do carro, tínhamos que aprender a viver nele em três e com um novo layout interno para abrigar as necessidades da terceira tripulante. O ritmo de viagem é muito diferente com uma criança e as coisas não acontecem na velocidade e no momento em que desejamos. Outros desafios e aprendizados de início de viagem ficaram a cargo de nossos novos equipamentos fotográficos e de filmagem (atualizados para equipamentos mais atuais) e com a aquisição de um drone. Quanta coisa a aprender já nos primeiros quilômetros. Se pensamos que na estrada teríamos tempo de sobra, nos enganamos. Nossos dias continuaram com 100% do tempo ocupados.

No dia 23 de outubro de 2024 cruzamos a fronteira com a Argentina. A Serena recebeu seu primeiro carimbo no passaporte. Quanta alegria. Foi nesse momento que tivemos a sensação de que a viagem realmente começara. Falar em um outro idioma, trocar dinheiro e ter que calcular quanto custa cada coisa, outros costumes e diferentes comidas nos davam a sensação de estarmos mesmo nos distanciando de casa.

O nome escolhido para este projeto em família foi “Expedição Patagônia”, já que a Patagônia seria o destino principal da viagem. Porém, ainda antes de sair de casa, houveram ideias de incluir a região norte da Argentina em nosso itinerário. O Roy insistia: “Quando teremos a oportunidade de passar novamente na região de Salta?” Escrevemos na página do itinerário no site que queríamos ser levados pelo vento e guiados pelos astros, que pretendíamos seguir sem roteiros definidos, deixando que a própria estrada revelasse nosso caminho. Então assim foi… As rodas do carro apontaram para oeste, rumo a Salta, onde havíamos estado pela última vez em 2007, em nossa primeira viagem de volta ao mundo.

Em Posadas encontramos pela primeira vez as águas do gigante rio Paraná, um dos maiores rios do mundo. Do outro lado do rio, Encarnación – Paraguai, conectada ao lado argentino por uma imensa e moderna ponte. Nos contentamos em ver o Paraguai somente de longe e seguimos viagem pela Ruta 12. Esta rodovia é plana e reta, rodeada de grandes fazendas e sem muitos atrativos no entorno. Entediados e sentindo sede por aventuras, nos interessamos pela região do Parque Nacional Iberá e Parque Nacional Mburucuyá que ficavam mais ao sul. Esta região pantanosa, similar ao nosso pantanal, formou-se no antigo leito do rio Paraná e nela abundam a flora e a fauna.

Cometemos o erro de levantar essa discussão na frente da Serena (agora já aprendemos, rsrs). Pois se ela escuta sobre algum lugar, de pronto diz: “Quero ir!” Quer conhecer tudo, mas claro, uma criança ainda não entende que não é possível conhecer tudo, que tem as questões de tempo, distância, custos dentre outras coisas envolvidas. Mas quando ela coloca algo na cabeça, é difícil de tirar. Passamos da entrada da estrada que nos levaria a esses parques e quando ela percebeu, de pronto começou a choramingar que queria ir. Abrimos votação e agora em três, não tem como dar empate. Voltamos e seguimos ao Parque Nacional Mburucuyá, que seria o menos turístico e desenvolvido dos dois.

Vem sempre um sentimento gostoso quando deixamos as rodovias principais, monótonas e com tráfego, para andar pelas estradas vicinais. Reduzimos a velocidade do carro e assim podemos ver o passo lento da vida do interior. A estrada adentrou numa planície alagada numa altitude média de 70m acima do nível do mar. Logo de início nos deparamos com as fazendas com seus cavalos e lagoas refletindo o céu. Vimos as primeiras capivaras, jacarés, emas, sapos, cobras e muitas aves. Para nós (Michelle e Roy) que já estivemos no pantanal brasileiro, esse bioma alagado não era novidade, mas para a Serena, foi uma diversão ver todos esses animais. Fizemos tantas paradas que chegamos ao destino somente à noite. O camping do parque é bem estruturado e não havia ninguém lá, além dos guardas-parque e nós. A grande massa de visitantes se dirige ao parque vizinho, deixando o silêncio pairar em  Mburucuyá. Quer dizer, nossa janta não foi tão solitária assim. Jantamos na companhia de centenas de mosquitos sanguinários e de um graxaim folgado que nos olhava com cara de gato de botas na esperança de compartilharmos a comida. Infelizmente não somos os tipos que alimentam os animais selvagens e ele teve que se conformar.

No outro dia despertamos ao amanhecer para fazermos a caminhada Circuito Yatay, de 7km, que vai até o estuário de Santa Lucia. A Serena é uma boa companheira de aventuras, mas ainda está se acostumando com caminhadas mais longas. Está com quase 20kg e não conseguimos mais carrega-la na mochila nas costas. Agora, ela tem que andar tudo com suas próprias pernas. 

Já na saída, demos de cara com dois veados pastando nas redondezas do camping. Na sequencia vimos poucos animais, mas muitas pegadas, principalmente de veados. Entramos por entre os Palmares de Yatay, uma das quatro palmeiras presentes no parque. Elas podem atingir 18 metros de altura e viver em torno de 500 anos. Cada ano, as folhas que caem deixam uma marca tipo anel no tronco, que permitem estimarmos sua idade com bastante precisão.

As capivaras apareceram e bem pertinho. O ponto final da caminhada foi quando chegamos ao rio Santa Lucia, onde fizemos um lanche e ficamos um bom tempo contemplando a natureza. Aquele cantinho escondido do parque era tão cheio de vida que sentíamo-nos mais vivos. Nenhum ruído, apenas a paz e a tranquilidade da natureza.

É preciso ter um enredo de conversas para motivar e distrair as crianças nas caminhadas. Na ida, tudo bem. A Serena vai pulando, correndo, mesmo que o pai sempre a alerte para poupar energia. E que energia ela tem! O problema é a volta, quando o cansaço começa a aparecer. Haja conversa e jogo de cintura dos pais para mantê-la caminhando. “Vamos até tal lugar e ali descansamos… Olha o gavião, olha essa pegada…” E assim vamos progredindo de metro em metro. Paciência é a palavra chave. A brincadeira que ela mais gostou foi quando a Michelle identificou a pegada de uma menina, de quase 6 anos, que tinha acabado de perder um dente… Sim, Serena recentemente havia perdido seu primeiro dentinho de leite no dia que intitulou: “Dia de Tiradentes!”

Terminamos o passeio visitando a Casa Sede da fazenda que hoje é um pequeno museu que conta a história da Família Pedersen. Seu dono era um botânico dinamarquês que transformou suas duas fazendas nesse parque que abriga 50% da diversidade da província inteira de Corrientes e que é pouco conhecido.

No almoço, os mosquitos deram lugar a moscas insuportáveis e depois, vieram as butucas. Sorte que apareceu um veado ali perto para nos entreter com sua companhia. Valeu a pena a insistência da Serena para irmos até lá. Temos que dar mais ouvidos a terceira integrante nas próximas decisões.

Em Corrientes paramos para tomar um café da tarde com panetone da orla do rio Paraná (dizem ser a orla mais bonita da Argentina) assistindo o movimento intenso das balsas e dos navios com containers que passavam por debaixo da ponte iluminada pela luz do entardecer. Cruzamos a ponte suspensa bem no por do sol (19h11) e seguimos rumo a Salta. 

Quatro dias depois da fronteira, depois de cruzar a reta interminável do Chaco, começamos a ver a silhueta das primeiras montanhas no horizonte, os primeiros indícios da Cordilheira dos Andes (ou Cordilheira dos Angeles, como dizia a Serena). Salta é parada obrigatória para todos que visitam o norte da Argentina. Assim foi em nossas outras passagens por ali e assim foi dessa vez. O ponto de encontro dos overlanders é o Balneário Camping Xamena que abriga uma das maiores “piletas” (piscinas em espanhol) da América do Sul. Ela estava vazia ainda, para o descontentamento da Serena, então, se não a cruzamos a nado, a cruzamos correndo.

Em Salta encontramos os primeiros brasileiros, conterrâneos catarinenses: Adriana, Johnny, Carla e Laerte residentes de Porto Belo e também os viajantes Luan e Tereza, na companhia dos quais tivemos momentos agradáveis. Incluso um choripán em comemoração ao aniversário da Adriana.

Estar em uma cidade grande, nas facilidades de um camping, é sinônimo de trabalho: limpeza do carro, lavanderia, atividades da escola e conserto do carro (vazamento de diesel do tanque e pendências do motorhome). Nas duas voltas ao mundo, conseguimos desconectar cem por cento de nossa vida no Brasil, porém, desta vez, mantivemos nossa casa trancada, há projetos em andamento e a Serena, vez ou outra, tem um encontro online com a professora e amigos da escola para compartilhar conhecimentos. Então, quando a internet nos permite, temos que trabalhar remotamente também.

O centro histórico de Salta é compacto e não precisa muitas horas para percorrê-lo a pé. A Catedral Basílica de Salta, a praça central, o Centro Cultural América, o Cabildo e a Igreja São Francisco são os principais marcos arquitetônicos, mas o que marcou mesmo foi a visita ao Museu Arqueológico de Alta Montanha. Sua entrada não é barata e seu tamanho é pequeno, mas o conteúdo deixado pelo Império Inca é simplesmente incrível.

Quando falamos em Império Inca, as primeiras coisas que vem na nossa cabeça são Peru, Trilha Inca e Machu Picchu, mas os incas vão muito além desses lugares. O Qhapaq Ñan (em quéchua, Caminho Real) é uma rede de caminhos criados durante o Império Inca que vão desde o sul da Colômbia até Mendoza na Argentina. Abrangiam todo esse território e eram percorridos a pé. Imagina? Hoje, usamos o carro para ir ali na esquina… 

Os grandes picos dos Andes eram considerados sagrados e eram os locais escolhidos para a realização de cerimônias, que incluem o sacrifício de crianças como oferenda aos deuses. Então, no museu da Alta Montanha, está em exposição um dos maiores achados da arqueologia  mundial, ocorrido em 1999 próximo ao topo do Vulcão Llullaillaco (6.739m), na fronteira da Argentina com o Chile: os corpos mumificados de três destas crianças junto a seus pertences. 

Há 500 anos atrás, quando um inca subia ao governo ou quando acontecia uma catástrofe climática era realizado um ritual chamado “capachoca” ou obrigação real, quando oferecia-se à Terra a maior das oferendas, que era a vida de uma criança. Essas crianças campesinas eram escolhidas a dedo e seriam as mensageiras entre a terra e o outro mundo. A donzela tinha 15 anos, o menino 7 e a menina do raio (assim conhecida pois ter a face queimada por um raio) 6. De acordo com os pesquisadores, a escolhida para protagonizar o ritual era a Donzela e as outras duas crianças seriam apenas os acompanhantes. Mas antes de fazerem a jornada a pé até o topo da montanha, onde seriam enterradas vivas, eram submetidas a uma grande celebração na capital Cusco. Estudos dos fios de cabelos dessas crianças mostram que nos dois últimos anos de suas vidas, elas se alimentavam como a elite da época, mas eram constantemente submetidas ao uso de substâncias psicoativas (mascavam folha de coca e consumiam bebidas alcoólicas) para ajuda-las a aceitar a aproximação da morte.

Os corpos mumificados são expostos um a cada dia. No dia que nós visitamos o museu, foi a vez do menino ser exposto. Ele estava num estado quase perfeito: cabelo, pele, unha e roupas praticamente intactas. Uma cena um tanto chocante para nós adultos, imagina para a Serena. Ela ficou impressionada. Mas o que mais a assustou foi uma outra múmia que fora recuperada de saqueadores e por isso estava num estado mais deteriorado (sem pele no crânio, sem nariz e boca). “Não quero mais ver múmias, mamãe”, dizia a Serena. 

Sacrifícios humanos, nos dias atuais, são inconcebíveis. Mas para os incas, o ato era visto de outra forma, tanto que para os familiares das crianças, era uma honra elas terem sido escolhidas.

Para digerir tanta informação, terminamos o nosso dia no mercado popular de San Miguel, comendo o que é mais tradicional na cidade: as verdadeiras e deliciosas empanadas saltenhas.

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