ícone lista de índices Índice

Diário de Bordo 3 – Salta, Cafayate e Cachi

30/10/2024 a 06/11/2024

Depois de quatro dias em Salta, chegara a hora de seguirmos viagem. Tínhamos muitos quilômetros a percorrer. Nosso destino – Ushuaia – ainda estava a 3.220 quilômetros de distância em linha reta na direção sul.

Estocar é sempre necessário antes de deixarmos qualquer cidade grande, portanto o mercado e o posto de combustível acabam sendo passagens obrigatórias. As primeiras compras num novo país são geralmente demoradas. Temos que apender sobre os alimentos oferecidos e principalmente seus preços. Confessamos que achamos tudo muito caro na Argentina, ao contrário do que ouvimos de viajantes que estiveram por aqui até 2023. A economia argentina está mudando bastante desde a entrada do último presidente, sua moeda valorizou e os preços subiram muito, mesmo usando o câmbio não oficial (câmbio blue, assim chamado).

O preço do diesel gira em torno dos 1.139,00 pesos por litro (5,70 reais). Paramos num YPF e enchemos o tanque principal (85 litros) e também o reserva (50 litros), mas mais uma vez, para nossa infelicidade, o tanque reserva começou a vazar! Desde que saímos de casa, o Lobo cheira diesel. Nossos tanques são de inox e solda-los significa primeiro encontrar alguém que solda inox e por segundo, baixar e subir o tanque, o que é muito trabalhoso. Optamos por viajar dessa forma mesmo e enche-lo pela metade nas próximas abastecidas. Vinte litros a menos significa uma menor autonomia de estrada.

Uma das rotas mais conhecidas no norte da Argentina é a rodovia RN 68, que conecta Salta a Cafayate, passando pela Quebrada de Cafayate, com suas paisagens dramáticas esculpidas pelo rio de las Conchas há milhões de anos atrás. Foram cerca de 186 quilômetros com muitas paradas para apreciar toda a beleza.

Começamos pela pequena vila Alemania, nomeada assim devido aos trabalhadores alemães que construíram a linha férrea até Salta entre 1916 e 1920. A ferrovia, que funcionou até 1971, permanece no mapa apenas para contar sua história. A partir dali, o espetáculo ficou por conta da natureza, com paisagens surpreendentes a cada curva. Visitamos a Garganta del Diablo e o Anfiteatro, duas fendas na rocha vermelha que culminam em um grande salão circular com ótima acústica; contemplamos a paisagem do mirante Tres Cruces e as montanhas Los Colorados; fotografamos a rocha El Sapo; filmamos de drone o Obelisco, ao lado das formações malucas que a Serena apelidou de quebra-cabeça; e fizemos uma trilha até Los Estratos, uma rocha que evidencia suas camadas retorcidas, cada uma com uma espessura, textura e cor diferente.

A parada em Los Castillos foi uma das mais demoradas, graças a insistência da Serena que queria ir até o rio. Ainda bem que demos ouvidos a ela. Caminhamos até a base das rochas e foi lindo. Ali ela brincou muito, correu e virou estrelinhas nas águas rasas do rio de las Conchas. Cruzou para o outro lado e, minúscula frente aos castelos, foi a única que encostou no paredão. Depois, não queria mais ir embora… 

O Roy havia percorrido essa rodovia em 2000, quando fez uma viagem solo de moto até o Deserto de Atacama. As coisas mudaram muito por aqui nesses 25 anos, segundo ele. Cafayate é um bom exemplo: antes uma pequena vila que passaria despercebida, hoje é uma cidade que abriga em sua praça principal restaurantes e bodegas para o turismo de vinícolas. O desenvolvimento turístico possui muitas coisas boas, claro, mas ao nosso ver, ele tira um pouco da essência do local. A vida deixa de ser como ela é e passa a ser para atrair e entreter turistas. Mas algumas coisas também permaneceram no mesmo lugar, como uma pequena casa de barro a beira da estrada. Ali, em 2000, com sua moto, o Roy parou para tirar uma foto sentado no banco de madeira na frente do casebre. Agora, mais de duas décadas depois, estava feliz em ter reconhecido aquele singelo lugar que ficou marcado em sua memória e que registrou em uma das poucas fotos (ainda de filme) que clicou naquela viagem.

De Cafayate, ao invés de seguir ao sul, que era nosso destino, fomos ao norte, a fim de percorrer a Ruta 40 que passa pelos Vales Calchaquíes, ou Rota do Vinho. O solo rochoso e arenoso da região, junto com o clima extremamente seco, de muito sol e grande amplitude térmica (dias quentes e noites frias) proporcionam as condições ideais para a produção de vinho. Os primeiros parreirais foram plantados pelos jesuítas no século 18 e um século depois, variedades das uvas francesas Malbec e Tannat foram introduzidas na região. Mas o vinho local mais típico é o Torrontés, oriundo de uma variedade de uva branca que dizem ser nativa dali.

Seguimos por uma estrada de ripio e muita costela de vaca, passando por vilas de adobe com canais de irrigação os quais tornam possível a vida naquele meio árido e irrigam os ditos parreirais em maior altitude do mundo. Na pequena São Carlos, acampados na praça principal, encontramos a atmosfera local de que tanto gostamos. Acampar em praças estava sendo uma boa alternativa em vilas e cidades, pois na Argentina são caprichadas e geralmente possuem um parquinho para a Serena brincar.

Uma coisa que estamos tendo dificuldades é com o horário argentino. A Serena, de costume, não levanta cedo. Ai, até tomarmos café e nos organizarmos, partimos tarde de nossos acampamentos. E as 13h00 começa a tradicional “SIESTA”, horário mais quente do dia, quando o comercio fecha. Ele reabre somente depois das 17h, ou as vezes 18h, dependendo do local. O povo vai para suas casas – almoça, conversa, dorme –, momento em que as ruas ficam vazias e silenciosas. Justo nesse horário estamos passando pelas cidades e não conseguimos comprar nada, rsrs. As 18h00 as coisas começam a ficar agitadas novamente e esse movimento dura até altas horas da noite. Os restaurantes abrem somente a partir das 20h30, quando já estamos caindo de sono. Quer dizer, a Michelle e o Roy, pois a Serena está no ápice de sua energia. Acabamos, todos os dias, indo dormir muito tarde.

Nossas manhãs também estão sendo diferentes. A Serena inventou uma brincadeira, que leva bem a sério: quer brincar que o Lobo é o ônibus da escola e temos que pega-la no ponto de ônibus sempre que partimos do local de acampamento. Ela vai lá fora, há uns metros adiante de onde estamos, e nos espera passar. Faz um sinal para pararmos e entra no carro toda feliz cumprimentando seus professores. Um sarro! 

Uma das passagens mais bonitas rumo ao norte foi a da Quebrada de las Flechas, onde nos inserimos entre formações rochosas erguidas em diagonal, apontando como flechas para o céu. Passamos dois dias num trajeto de dez quilômetros que percorremos diversas vezes indo e voltando para fazermos imagens. A Serena está se saindo uma ótima assistente de produção e nos ajuda com a comunicação de rádio e outros equipamentos.

O Roy sonhava em tirar os pés do chão na Quebrada de las Flechas e num acampamento ao lado do rio Calchaquí, começou a função da montagem do paramotor. Depois de uma noite estrelada e com muitas estrelas cadentes, o Roy levantou cedo e, com a Michelle e a Serena na cama, partiu para um leito de rio seco onde pretendia decolar. As condições estavam tranquilas, com uma leve brisa. Enquanto a Serena dormia, organizamos tudo: Roy o paramotor e vela; a Michelle os equipamentos de radio e câmera. Faziam quase dois anos que ele não voava. Estava destreinado. Quando tudo estava pronto, acordamos a Serena, que ficaria desapontada se não visse o pai decolar. O Roy deu o sinal e correu, correu, correu e… o paramotor? Não subiu, até que ele tropeçou e caiu de joelho no chão. Só deu para escutar o barulho da hélice batendo numa pedra. Serena ficou assustada – a acordamos para ver o pai se esborrachar. Logo a Michelle a tranquilizou e ela de pronto apertou o botão do rádio e perguntou se estava tudo bem com o Roy. Quando ouviu um sim, saiu correndo ao encontro do pai. O encontramos no chão com a calça rasgada, joelho e cotovelo esfolados e a hélice do paramotor quebrada. E por final, para má sorte do piloto, ele ainda queimou a mão no escapamento do motor quando foi verificar se estava tudo bem com o equipamento.

Segundo o depoimento do Roy escrito no diário: “Acho que a falha na minha decolagem foi uma análise errada do local. 1) Vento inverteu na hora da decolagem. 2) Direção em que corri era subida. 3) Era o único caminho mais plano para correr, pois ao lado haviam pedras grandes, sem chances para acertar a vela de frente ao vento. 4) Estávamos acima dos 1.900m altitude, o que sempre dificulta.” Machucado, mas bem, O Roy decidiu desmontar tudo e seguir viagem. Fazer o que? Nem sempre as coisas acontecem conforme planejado.

Num dos mirantes avistamos o Nevado Cachi (6.380m de altitude), onde celebramos com a Serena o primeiro avistamento de neve de sua vida. Mais alguns quilômetros e chegamos a vila de mesmo nome da montanha. Cachi é uma vila muito charmosa e agradável, com construções de adobe caprichadas. Como sempre, tudo se concentra na praça principal e nas edificações e quadras ao seu redor. 

Nos dirigimos ao Camping Municipal e ali passamos três dias de descanso, organizando, trabalhando (agora foi a vez dos painéis solares darem problema) e planejando. Coisas a fazer no dia-a-dia de viagem, sempre há muitas, mas entre uma tarefa e outra agora temos que brincar de bonecas, bichinhos, pega-pega, esconde-esconde e tantas outras brincadeiras. Serena demanda bastante atenção. Tempo somente para nós, quase não existe, podemos contar em segundos, ou com sorte, em minutos.

Nosso próximo destino seria a região da Puna argentina, com altitudes acima de 3.500m e passes de quase 5.000. A Michelle teve a infeliz ideia de pesquisar na internet sobre crianças na altitude. Era uma dúvida que ela sempre teve e nunca tinha encontrado alguém para lhe esclarecer. Era possível ou não viajar com crianças na altitude? Quais as indicações? Como os locais fazem? A maioria dos relatos desaconselham levar crianças menores de 8 anos acima dos 3.500m e como sempre uma atmosfera de terror prevalecia nas palavras escritas. Claro que ela ficou preocupada com o que leu e isso gerou uma discussão séria entre nós dois sobre ir ou não. Sempre que nos deparamos com situações novas, junto com elas vem o medo pela inexperiência. 

Chegamos a ir na farmácia perguntar se havia uma bomba de ar que a Michelle leu ser vendida no Peru caso a pessoa tivesse falta de ar e apresentasse o mal da montanha. Não encontramos a tal bomba, mas pelo menos ela encontrou uma dose de tranquilidade quando a farmacêutica lhe disse que não teria problema, pois apenas passaríamos pelas altas altitudes e não permaneceríamos nelas. Uma coisa era certa, até aqui fizemos uma boa aclimatação, pois desde que saímos de Salta fomos subindo devagar (Salta 1.152m – Cafayate 1.683m – Cachi 2.350m). O importante seria observar a Serena e seguir com bastante cautela. Conversamos bastante com ela, lhe explicando e pedindo que acima dos 3.000m cuidasse com os movimentos. Não seria permitido correr ou pular. Tudo teria que ser feito a passo de tartaruga.

Partimos no dia 05 de novembro pelo Alto Vale Calchaquí. Dirigiríamos por um trecho de 145 quilômetros que é o mais alto da RN 40, que passa pelo Paso Abra el Acay (4.895m) passando por paisagens deslumbrantes pontuadas por esbeltos cactos. Escondidos no meio das montanhas estão os Graneros Incas e de la Poma, locais onde os incas armazenavam grãos em compartimentos de barro e também usavam de abrigo desde 1000 anos atrás e a Puente del Diablo, um túnel ou ponte com formações de estalactites e estalagmites dentro de um cânion estreito.

Fizemos mais um acampamento estratégico antes do passe a 3.113m para aclimatar e noutro dia seguimos o vale, agora por uma estrada estreita, com muitas curvas e contracurvas. Em nossa casa temos uma regra: comer balas e pirulitos, somente nos finais de semana, mas dessa vez deixamos a Serena comer balas e mascar chicletes a vontade enquanto subíamos. Mascar algo é uma boa forma de compensar a pressão e, acabou sendo, uma boa distração. A princípio, ela se sentiu muito bem.

A estrada ficou cada vez mais bonita conforme subíamos. Cruzamos diversas vezes o mesmo rio (a Serena contou mais de 10 vezes) e como sempre, houveram muitas paradas para fotografar e contemplar. Há tempo procurávamos os guanacos que surgiram pelo caminho praticamente camuflados na paisagem marrom com capins amarelos. Para os olhos desatentos, passariam despercebidos, para os nossos, não.

Chegamos no Pase Abra el Acay depois do meio-dia e nos deslumbramos com um visual lindo, com 360 graus de vista. A Serena pedia para subir nas montanhas para encostar nas nuvens e ali, quase as tocamos. Não somos de ficar colando adesivos em placas pelos lugares, mas ali merecia um e o fizemos, ou melhor, a Serena colou. Como alertado, não deveríamos permanecer por muito tempo em grandes altitudes e logo iniciamos a descida, serpenteado pelas curvas e admirando os guanacos que pastavam nos vales úmidos forrados por um musgo verde. A estrada ficou péssima, de muita tremedeira até encontrarmos a RP 51 que nos levaria a San Antonio de los Cobres.

Deixe um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Veja Também

Objetivo

19 | set | 2024

Itinerário

20 | set | 2024

Diário de Bordo 1 – Santa Catarina e Rio Grande do Sul

21 | nov | 2024