06/11/2024 a 22/11/2024
Depois do passe Abra el Alcay (4.954 msnm), no norte da Argentina, passamos por San Antonio de los Cobres (3.775 msnm) e continuamos pela rodovia 51 por mais alguns quilômetros, para então dobrarmos ao sul pela 129, na direção de Santa Rosa de Los Pastos Grandes. Esta estrada levou-nos novamente para mais um passe de cerca de 4 mil msnm, para então baixarmos até 3.686 msnm, onde encontramos um lugar para pernoitar, próximo ao Salar de Pocitos e abaixo de um lindo céu estrelado.
Estávamos exaustos, aquele dia havia sido intenso. A altitude, pelo simples fato de haver menos oxigênio, cansa. Além disso, a longa distância percorrida por estradas vicinais, poeirentas, cheias de serras e curvas, roubou o restante da nossa energia. Mas o que vimos, foi indescritível. A região é conhecida como Puna: um imenso deserto nas alturas, salpicado por montanhas com mais de seis mil metros de altitude, multicolores, de vegetação escassa e onde as poucas e pequenas vilas ficam distantes entre si. Mesmo que nunca botamos nossos pés na lua, diríamos que se assemelha a superfície lunar.
O último trecho, próximo a Santa Rosa de Los Pastos Grandes, estava super movimentado por caminhões e ônibus que trabalham nas minas de ouro, cobre e lítio. A Puna é riquíssima daquilo que está debaixo da terra, sendo que a mineração é o que traz riqueza para a região.
Após uma boa noite de descanso, o próximo dia começou agitado novamente, pois era aniversário de um dos integrantes desta expedição – o motorista completava 50 anos. A Serena levantou cedo para preparar uma caça ao tesouro para que o Roy precisasse fazer um pouco de esforço para encontrar o seu presente: um lindo desenho de nossa família feito com muito amor e carinho.
Outro grande presente ainda estava por vir naquele dia de viagem, quando cruzamos o Desierto del Laberinto, um lindo caminho em ziguezague por entre dunas fósseis que possuem 10 milhões de anos e milhares de picos de argila e cristais de gesso. Depois vieram mais paisagens de tirar o fôlego, como uma serra de curvas de 180 graus de onde tivemos vistas do vasto Desierto del Diablo. A cada montanha que cruzávamos, tudo mudava e a paisagem ficava ainda mais bonita que a anterior.
A tarde, numa subida íngreme e de pedras soltas, já próximos a Tolar Grande, algo estranho no carro aconteceu, quando faltou força para ele subir. Esse foi o começo de preocupações maiores com a mecânica do Lobo, pois até então os problemas dessa viagem eram apenas com equipamentos. Seguimos para Tolar Grande e terminamos o dia num restaurante simples da cidade, comendo a tradicional milanesa argentina para mais celebrações do aniversário na companhia de um brasileiro chamado Erics, que veio a Puna fazer astrofotografia. Dessa vez, nessas terras isoladas, não tinha milanesa con papas, apenas con fideo. É o que tem pra hoje…
Tolar Grande, localizado no coração da Puna, cedia em suas imediações os Ojos de Mar, que são pequenas lagoas, de origem vulcânica, cujas cores variam de acordo com a incidência da luz do sol. Elas se destacam principalmente por estarem num solo predominantemente branco de sal. Mas o que queríamos mesmo conhecer ali era o Cone de Arita.
O caminho, a partir de Tolar Grande, possui poucas curvas. Em 75 quilômetros, atravessa o Salar de Arizaro, de onde se tem lindas vistas dos vulcões Socompa (6.051msnm) e Llullaillaco (6.730 msnm), sendo o último a montanha sagrada descrita no nosso ultimo diário, onde foram desenterradas as três múmias de crianças praticamente intactas, que foram oferecidas aos deuses pelos incas há cerca de 500 anos atrás.
Na viagem ao Cone de Arita, mesmo que a planície de Arizaro não exigiu força alguma do motor, a falha no carro se intensificou. A equação é simples: falha no motor + altitude + longe da civilização + criança a bordo = preocupação. Então, quando chegamos, antes mesmo de poder apreciar tamanha maravilha da natureza, trocamos o filtro de diesel, pensando que este pudesse estar bloqueado com um possível diesel de má qualidade que abastecemos em San Antonio de Los Cobres. Um morador local que passou por ali nos falou que o diesel é mesmo ruim nessa região, pois tem muita parafina. Após o filtro trocado, quando demos a partida para testar o carro, com o motor frio, parecia que o problema havia sido resolvido. Aquela noite, pelo menos, dormimos tranquilos.
Falando do Cone de Arita… situa-se na extremidade sul da planície de Arizaro e não é tão difícil descrever sua aparência, pois seu nome já diz tudo: um cone! Mas como descrever o seu esplendor? Esta pirâmide vulcânica quase perfeita, de 200 metros de altura, mescla em sua formação lava e sal e possui uma beleza única. Sua localização solitária no meio da brancura do salar chega a chocar, de tão espetacular. Assistimos o pôr do sol, bem como o nascer do sol doutro dia, somente nós, hipnotizados pelos efeitos da luz sobre ele. O investimento que fizemos em um drone se pagou só com as imagens que ele nos propiciou, pois a sombra perfeita irradiada sobre a planície dava um contraste maravilhoso visto de cima. O cone se situa a um pouco mais de um quilômetro da estrada, então caminhar até ele e poder toca-lo é algo realmente surreal.
Pensando que a falha do motor do carro havia sido resolvida com a troca do filtro de combustível, seguimos viagem. O plano era continuar pela inóspita região da Puna e rumar ao sul por uma estrada 4×4 que nos levaria a Antofallita, Antofalla, Antofagasta de la Sierra e Fiambalá. Subimos um morro para ver o Cone de Arita de outro ponto de vista, de onde ele também estava lindo, mas logo a frente, o problema voltou com força. O carro até funcionava, mas acima de 2.000 giros dava falta de diesel. É incrível como a Serena não conseguia mensurar a gravidade do problema. Naquele ermo, calor, carro com problemas, ela continuava querendo brincar, brincar e brincar.
No meio da estrada, num sol escaldante, nos pusemos a trabalhar. A primeira tentativa foi isolar o filtro de sedimentos com um by-pass. Esse é um filtro situado logo após o tanque principal, que tem o objetivo de separar a água do combustível e que também poderia estar emperrado. Não adiantou. Seguir em frente, daquele jeito, nem pensar.
Naquelas imediações, a vinte quilômetros antes dali, as únicas pessoas a quem poderíamos pedir um auxilio trabalhavam em uma gigantesca mina de ouro. Voltamos para lá e o segurança nos deixou utilizar a internet por uma hora mais ou menos, mas depois tivemos que sair, pois o chefe do expediente não nos deixou trabalhar no carro no local. Deu para perceber que o segurança ficou constrangido em ter que nos dar a notícia, ainda mais que havia uma criança a bordo, mas a ordem, segundo ele, vinha de cima. Ele até nos deu seu telefone para que, quando chegássemos em Tolar Grande, o informássemos que chegamos sãos e salvos.
No pouco tempo de internet, tivemos a chance de nos comunicarmos com o grupo Land Rover de SC via WhatsApp, do qual fazemos parte e muitos landeiros foram muito solícitos. Os testes que fizemos ali no local levaram-nos a crer que o problema estava na pré-bomba, que leva diesel até a bomba injetora depois de passar pelo filtro principal. A bomba supostamente funcionava quando ainda estava fria, mas quando o carro aquecia e exigia mais potência, dava falta de combustível.
Voltamos a Tolar Grande a passo de tartaruga, ou melhor, com o carro trabalhando com baixo giro no motor. Chegamos! Ufa! E lá, seguindo a instrução dos amigos landeiros, adaptamos um galão de combustível suspenso, para que o diesel descesse por gravidade diretamente até a bomba injetora. Esta parece ser uma alternativa fácil, mas quando se está no meio do nada, encontrar os materiais necessários (mangueira, galão, conexões, dentre outras coisas) complica um pouco. Acabamos indo trabalhar nas imediações de uma estação de trem, onde ventava forte e fazia muito frio. O dia virou noite, até que o sistema ficou pronto.
Aquela noite praticamente não dormimos por preocupação. Com aquela adaptação improvisada, teríamos que retornar até Salta, onde poderíamos encontrar peças sobressalentes. Seriam 350 quilômetros de estrada, sendo mais da metade de chão batido, com passes acima dos 4.500m. Tudo teria que correr bem no outro dia. Ter problemas na altitude, com a Serena, não seria nada bom.
Acordamos com o nascer do sol e com a luz do dia checamos a parafernália: parecia que tudo estava funcionando bem. Tomamos café e seguimos viagem fazendo paradas de tempo em tempo para reabastecer o galão, que era de apenas 20 litros. A estrada de volta, em partes diferente da que fizemos na vinda, foi linda, mas com muita poeira e sem paradas para apreciar. De Pocitos pegamos um atalho que ia direto para a 51, mas isso nos rendeu o passe mais alto daquele dia, a 4.560 msnm, em Alto Chorrillo. Baixamos para perto dos 3.000 msnm para depois termos que subir novamente até o passe Abra Blanca, a 4.080 msnm, para então, depois de San Antonio de los Cobres, descer por uma estrada longa pela Quebrada del Toro, um vale profundo com montanhas lindas ao redor, até que chegamos em Salta no final do dia. Foi um alívio avistar a tão esperada cidade, depois de uma viagem longa e incerta.
Em Salta quase não há peças para Land Rover, mas essa bomba que quebrou é utilizada também em outros carros, então encontramos uma similar. Só a oficina mecânica que nos auxiliou a encontrar e trocar a peça, por trabalhar normalmente para overlanders europeus, atolou a faca na hora do acerto. Nos cobrou mais do que o dobro do que uma outra mecânica em Salta cobraria, mas tudo bem, mais um aprendizado: de não esquecer de fazer cotação antes de começarem os trabalhos.
Aproveitamos a passagem em Salta e a estrutura do Camping Municipal para resolver mais um problema que ocorrera nos painéis solares do carro, que hora funcionavam, hora não. Foram umas dez subidas e descidas no teto do carro para descobrirmos que um dos três painéis apresentava um mau contato e como todos estavam ligados em série, a alimentação as vezes cortava.
Antofagasta de la Sierra, que era nosso destino na sequência do Cone de Arita, lá onde os problemas do carro começaram, também poderia ser acessada mais ao sul pela Ruta 40. Então, de Salta descemos mais uma vez pela Quebrada Cafayate e de Cafayate continuamos ao sul, onde, em Hualfin, subiríamos pela Ruta 36 de volta à altitude da Puna.
Mas numa determinada reta da Ruta 40, quando apreciávamos a natureza exótica ao redor, sentimos um cheiro estranho. Foi a Serena que, ao olhar para trás, viu, por debaixo da pia, o inversor em chamas. Ele estava ligado para carregar algumas baterias da câmera fotográfica. Caramba, que susto!!! Segunda vez que isso acontece nessa viagem. Desligamos rapidamente a chave geral e fomos ver se algo mais havia queimado. A princípio não, ufa. Mas poderia ter acontecido algo pior, já que o inversor cuspia labaredas de fogo pela ventoinha.
Bom, dos males, o menor, pelo menos por enquanto. Continuamos por aquela estrada asfaltada por mais alguns quilômetros e numa curva suave a esquerda, quando nosso carro descia há 70 km/h, um estrondo muito forte ecoou lá embaixo, como se tivéssemos passado por cima de um pedaço de ferro. Paramos rapidamente no acostamento, mesmo que não era um local seguro e o Roy constatou que o cardã havia quebrado. Ou melhor, a cruzeta dianteira do cardã traseiro estourou, causando aquele estrondo.
Talvez estejamos exagerando, mas os problemas nessa viagem parecem que nunca acontecem sozinhos. Quando algo acontece, pode esperar que outro problema virá na sequência. E desta vez a coisa foi feia. O que poderia ter causado a quebra da cruzeta, se estávamos viajando no asfalto, numa descida, sem forçar o sistema de tração do carro? Inacreditável. Porque tudo isso estava acontecendo? Era um sinal?
Na vida a gente sempre tem duas formas de enxergar um problema. Um é pelo lado negativo, reclamar, pensar que isso só acontece com a gente. Outra forma é olhar o lado bom e agradecer por nada pior ter acontecido. Um cardã pode facilmente tombar um carro quando uma cruzeta dianteira estoura, exatamente o que ocorreu conosco. Se a ponta dianteira desse cardã encontra um simples buraco ao cair, que desse a ele um calço, o cardã formaria uma alavanca e poderia tombar o Lobo. É por isso que muitos caminhões usam correntes embaixo do cardã, para prevenir que, se este quebra, que caia até o chão. Nos parece que isso é até obrigatório na Argentina.
Há uma coisa em nosso Land Rover que temos que dar o braço a torcer. Sempre que temos problemas, conseguimos faze-lo andar até uma próxima cidade. Somos do tipo de “mecânicos de até a próxima mecânica”! Naquele estacionamento ao lado da rodovia, o Roy desmontou o cardã e engatou o bloqueio central e dessa forma pudemos seguir até Belén, abortando por completo nosso plano de ir a Antofagasta de la Sierra. Parecia que não era desta vez que éramos para conhecer essa parte da Puna. Por ironia do destino, na caixa de peças sobressalentes, só carregávamos a cruzeta do cardã dianteiro, que é maior que a do cardã traseiro.
Em Belén conhecemos um mecânico que poderia nos ajudar no outro dia pela manhã, porem ele tinha pouco tempo, pois a tarde viajaria à Bolívia. Então levantamos cedo, aquecemos a luva do cardã para endireita-la, colocamos uma nova cruzeta, que por sorte o mecânico tinha em seu estoque, montamos o cardã e, felizes da vida, fomos tirar o carro da rampa para seguir viagem.
Para nossa maior surpresa, o carro simplesmente não andou. Verificamos as alavancas de reduzida e bloqueio para ver se estavam mesmo engatadas, tentamos novamente e nada. Que coisa! Com o carro funcionando e engatado em marcha, fomos direto onde algo ruía estranho – ponta do eixo. Estava ali o problema! Além da cruzeta do cardã, naquele mesmo estouro na estrada, partiu também uma ponta de eixo traseira e a outra torceu de uma forma que nunca vimos antes.
Pagamos o mecânico pelo serviço de instalação da cruzeta e saímos de lá com o nosso carro mal resolvido. Fomos para o Camping Municipal da cidade para pensar o que fazer. O que teria causado tudo isso? E a sorte não parecia estar ao nosso lado mesmo. Nos dias que passamos no camping, a Serena foi mordida no rosto por um cachorro de rua e então, além da preocupação com o carro, tínhamos mais essa para ocupar nossas cabeças.
Entre idas ao hospital para saber dos protocolos da Argentina em relação a doença da raiva; conversas no WhatsApp com o Gunnar nosso mecânico de São Bento; o tão esperado aniversário da Serena que aconteceu naquele fim de semana; desmontamos o diferencial traseiro para ver se seria ele que teria causado tudo isso. E no improviso do camping, as coisas acabam sendo mais difíceis. Ainda bem que fizemos amizade com alguns argentinos, que nos ajudaram tanto com a questão do carro, como nos contatos com os profissionais da saúde da cidade sobre a mordida do cachorro. Muchas gracias a los hermanos Eva, Josh e Rodolfo.
Para encurtar o relato, não encontramos vacina antirrábica para aplicar na Serena, mas os médicos, inclusive um brasileiro que trabalha na cidade, nos confortaram dizendo não haver indícios de raiva na região. Em relação ao carro, já que o diferencial não apresentava problemas aparentes, apesar do baixo nível de óleo que ele continha, decidimos instala-lo novamente, remover de vez as duas pontas de eixo traseiras e cruzar para o Chile pelo Paso San Francisco somente com a tração dianteira. No Chile conseguiríamos as pontas de eixo com mais facilidade e por quase a metade do preço.
O Paso San Francisco, por questões de baixo fluxo de carros, abria naquela época duas vezes por semana: terças e sextas-feira. Planejamos ir na segunda até Fiambalá, para que na terça pudéssemos atravessar para o Chile, mas tivemos mais uma surpresa. Devido a um feriado na Argentina, o dia do cruze de terça foi adiantado para segunda e já que não temos bola de cristal para saber o que passa na cabeça dos agentes de fronteira, fomos obrigados a esperar até sexta-feira para podermos ir ao Chile. Santa paciência, diria Roben, no desenho do Batman. Talvez fosse isso que o universo queria nos dizer: “devagar, devagar, para que essa pressa? Saiam dessa vida louca de que tudo é para ontem, curtam o momento.” Pensando assim, nos tranquilizávamos, pois eram questões que saiam de nossa alçada.
Já que tínhamos tempo, fomos curtir o momento. Naqueles dias de espera, brincamos como crianças nas dunas Saujil, saindo de lá com areia por todo corpo e noutro dia nos deliciamos nas Termas de Fiambalá, onde há 14 piscinas de águas quentes, que vão de 30 a 45 graus centígrados. Era tudo o que precisávamos naquele momento – relaxar. Depois da piscina com 40 graus centígrados, o movimento de pessoas diminuía, pois poucos tinham coragem de enfrentar tão alta temperatura. Na piscina de 45 graus, temos que confessar, entramos, mas tínhamos que ficar imóveis, caso contrário a água realmente queimava a pele.
Sexta-feira chegou e rumamos para o Chile, curtindo as incríveis paisagens do Paso San Francisco, que chega a 4.759 metros de altitude. Lindo, com guanacos e vicunhas em abundância. Muitos vulcões, vários acima de 6.000 metros. A curtição foi tamanha, especialmente pela Serena ter tido a primeira experiência de encostar no gelo das partes altas do passe, que quase tivemos problemas na fronteira. É que a aduana chilena estava a 80 quilômetros adiante da fronteira, e nós não sabíamos disso. Chegamos atrasados, nos últimos cinco minutos do segundo tempo, mas os oficiais foram gentis e conseguimos carimbar os passaportes. Não sabemos como iríamos resolver a questão se chegássemos mais tarde, pois somente na outra terça-feira a fronteira estaria aberta novamente.
Chegamos ao Chile!
Adorando o diário de bordo!!!
Sílvia