22/11/2024 a 05/12/2024
Com nossos passaportes carimbados na imigração do Chile, dirigimos pela Ruta 31 rumo a Copiapó por uma estrada de chão batido que passa por um deserto árido e avermelhado e volta a subir acima dos 4.300 metros de altitude. Depois de muitos quilômetros, passamos a descer a cordilheira por uma serra íngreme, cheia de curvas, onde vez ou outra víamos indícios de minas de cobre, lítio, ouro e outros. Com o carro com problemas mecânicos, confessamos que estávamos com um certo medo: “E se os freios falhassem?” Sai pra lá, azar…
A estrada adentrou um vale com pastagens verdes, graças a um rio nas proximidades, e foi ali que fizemos o nosso acampamento. Cavalos e ovelhas pastavam ao redor e, à noite, o céu escuro e estrelado deu um espetáculo à parte. Ali, a Serena viu seu primeiro satélite cruzando o céu.
No sábado, começamos a viagem bem cedo até Copiapó, a apenas 100km dali. Esperávamos receber as pontas de eixo até o meio-dia. No caminho, a paisagem voltou a ser árida. Nas encostas das montanhas, rastros de carros indicavam ou acessos a minas ou trilhas desafiadoras para carros 4×4 — diversão dos chilenos da região.
Ao chegarmos à transportadora, a notícia: a encomenda só seria liberada na segunda-feira, após o meio-dia. Para quem já esperava dias (ou semanas), mais um fim de semana não faria tanta diferença. Mas o problema era que Copiapó não é lá muito convidativa e ainda fomos alertados sobre a criminalidade local. Muitas cidades chilenas vêm enfrentando problemas com roubos, especialmente contra viajantes. Motorhomes chamam a atenção, pois é óbvio que carregam coisas de valor, como câmeras e notebooks. E o Lobo, como chama a atenção.
A aduana do Chile não permite que se tragam alimentos frescos de outros países, por isso precisávamos abastecer a despensa. A boa notícia é que a variedade e qualidade de produtos nos mercados chilenos são superiores às da Argentina. Conseguimos comprar um novo inversor para substituir o segundo que já havia queimado na viagem. Nosso fim de semana acabou se concentrando no parque da cidade, onde aproveitamos para trabalhar nas pendências: suportes dos pistões de elevação do teto, que haviam quebrado; a bomba d’água, que havia parado de funcionar; e a instalação do novo inversor. Era bom que os pequenos problemas estivessem resolvidos para que na segunda-feira pudéssemos nos concentrar nos grandes. E a Serena, tinha um parquinho e uma grande área para correr e gastar suas energias. Incentivávamos ela a fazer amigos locais, mas ela relutava, pois tinha medo por causa do idioma.
Segunda, às 15h, finalmente conseguimos as pontas de eixo. Que alívio! Estávamos apreensivos para instalá-las e ver o comportamento do carro após aquele episódio que aconteceu na Argentina, quando quebraram os dois semieixos e a cruzeta do cardã num estrondo só. Num estacionamento a 500 metros do parque, fizemos a instalação, mesmo tendo sido alertados de que o local não era muito seguro. Pelo menos o piso de concreto ajudaria o Roy a deitar embaixo do carro para instalar o cardã.
Não sabemos quanto tempo durou o trabalho, talvez uma hora. Felizes da vida, então, começamos a guardar as ferramentas. A viagem, a partir dali, poderia seguir novamente. Será? O Roy ligou o carro, verificou a alavanca da caixa central, tirando-a do bloqueio, colocou a primeira marcha e, devagarzinho, tirou o pé da embreagem para o carro andar. Ele andou… mas por um metro apenas, e travou repentinamente. O que foi isso? A verdade é que suspeitávamos que havia algo a mais de errado com o carro, mas, para manter a autoestima, nos recusávamos a acreditar.
Olhamos um para o outro, respiramos e deixamos passar alguns segundos para termos tempo para pensar. O pior era que, no fim do dia, aquele estacionamento virava pista de autoescola. Com nosso carro quase no meio dele, acabávamos atrapalhando as aulas.
O jeito foi deitar debaixo do carro para desfazer o que tinha sido feito antes, para ao menos podermos nos mover dali com o eixo dianteiro. Na sequência, encontramos, em um aplicativo para viajantes, um mecânico na cidade, bem recomendado por sinal, que talvez pudesse nos ajudar. Ligamos, ele atendeu, mas só poderia nos receber na quarta-feira, pois também trabalhava em uma mina a 300km dali — então, estava ora na mina, ora na oficina. Aqueles dois dias já não faziam nem cócegas mais…
Na quarta-feira, como combinado, chegamos à oficina antes do mecânico. Quem abriu o portão foi o Roberto, que a princípio pensamos ser o ajudante, mas na verdade era o patrão. Mário, o mecânico, chegou em seguida, e lhe explicamos a situação. Imaginávamos que o problema pudesse vir da caixa de transferência — aquela que distribui a tração pelos cardãs para os eixos dianteiro e traseiro. Podia também estar no diferencial traseiro, mas explicamos que havíamos o baixado ainda na Argentina e, em nossa inspeção, nada de anormal havia sido identificado.
Baixamos o óleo da caixa de transferência para ver se saía algum fragmento de metal, o que seria indício de algo quebrado. Abrimos a tampa para inspecioná-la e tudo parecia estar perfeito. Caramba… então por que o carro não se moveu lá no estacionamento quando instalamos as pontas de eixo e o cardã?
Montamos tudo de novo e, nesse momento, o mecânico foi um pouco sacana, pois contou uma história de que fez um ajuste entre a caixa central, o cardã e o diferencial. Que ajuste seria aquele? Não existe nada para ajustar. Pensamos que ele só queria justificar o valor que iria nos cobrar. A verdade é que nem ele sabia o que tinha feito — mas o carro voltou a funcionar.
Pagamos a conta e seguimos viagem, mas não estávamos nada confiantes. Paramos num posto de combustível e, ao inspecionar o carro por baixo — aquela olhadinha para ver se vazava óleo ou algo assim — detectamos um risco de óleo por todo o chassi, como se alguém tivesse o espirrado com o uso de uma lava-jato. Chacoalhamos a cabeça com ar de desapontamento, fizemos meia-volta e retornamos à mecânica. Estacionamos direto na rampa e, juntamente com o Mário, fomos novamente atrás do problema: o rolamento externo do pinhão do diferencial havia quebrado, estourando também o retentor de óleo, por onde saiu todo aquele vazamento. Bingo! Estava ali o causador de todo esse sufoco. O rolamento, quando quebrou, travou o diferencial com isso quebrou a cruzeta do cardã e as duas pontas de eixo. Imaginamos que o rolamento quebrado às vezes travava e às vezes soltava — o que explicaria o tal ajuste do mecânico.
As questões agora eram duas: será que iríamos conseguir o tal rolamento? E quanto ao tempo do mecânico? Na sexta-feira de madrugada, ele viajaria até a mina em que trabalhava e só voltaria no domingo. Agora, sinceramente, mesmo que fosse para estarmos tristes com o problemão que ainda tínhamos para resolver, ficamos aliviados por finalmente termos encontrado a causa de tudo aquilo.
Enquanto o patrão foi à cidade procurar as peças, Mário tratou de desmontar o diferencial. As peças foram encontradas, porém, ao retirar o rolamento quebrado, constatamos que este havia feito um rasgo na carcaça do diferencial, que deveria ser soldada e torneada, para que pudéssemos montar com o rolamento novo.
Aí o Mário — apelidado por uns como Super-Mário — jogou a toalha. “Ah, isso não vai dar, ninguém vai consertar isso amanhã…” e blá-blá-blá. Disse que os torneiros da cidade têm trabalhos muito mais lucrativos com as máquinas das minas do que com o diferencial de um brasileiro. A pulga ficou atrás da orelha, pois, se ele tivesse mesmo razão, teríamos que esperar até domingo, quando ele estaria de volta da mina, para então montar o conjunto na carcaça torneada.
Dormimos com o carro sobre a rampa da mecânica e, quando a quinta-feira amanheceu, a tensão entre nós já estava grande. É difícil manter a calma numa situação dessas, ainda mais quando a solução não está em nossas mãos. E não era um dia apenas em função disso, mas vários. Na verdade, o problema já nos consumira semanas. Além disso, a Serena precisava da nossa atenção, mesmo quando tínhamos coisas importantes para resolver, e a somatória de tudo ia minando nossos ânimos. Até que explodem. E explodiram. Nem fotos tiramos de Copiapó (constatamos isso somente agora), de tão minados que os ânimos estavam.
Para encurtar a história de quinta-feira: mesmo que o Mário não estivesse confiante sobre a carcaça do diferencial, pegamos a peça e fomos ao torneiro. E, por incrível que pareça, no tempo em que explicávamos o que deveria ser feito, ele já se antecipava para fixar a peça no torno, falando que só precisava de varetas de solda e que em três horas estaria pronto. A batata quente, na verdade, voltou para o Mário, pois, com a carcaça consertada, ele teria que montar tudo naquele dia. E assim aconteceu: trabalhamos até tarde da noite, mas o Lobo saiu de lá com aquele problema resolvido, levando consigo apenas a sequela de um ruído, pois o pinhão havia marcado a coroa quando o rolamento quebrou. UFA!!!
Finalmente estávamos liberados para ir ao Oceano Pacífico, que não estava longe dali. Fomos a Puerto Viejo, uma cidade muito bonita, mesmo situada numa localidade extremamente árida, onde não se vê um verde, apenas deserto e mar. As casas da cidade foram construídas de forma muito simples, muitas de compensado, que, pela aridez do ar, resistem bem ao tempo. A Serena correu para praia igual a uma maluca, molhando os pés e toda a roupa nas águas geladas do Pacífico, ao mesmo tempo que catava todas as conchas que conseguia segurar nas mãos. Haviam muitas conchas, de todos os tipos e tamanhos e ficou claro que isso ela puxou da mãe, que já catou conchas nos quatro cantos do mundo.
Numa praia ao sul de Puerto Viejo, fomos conhecer a localidade onde há um mito de que, tempos atrás, uma cratera se formou com a queda de um meteorito. Verdade ou não, é pelo menos interessante ver de como a rocha ao redor é diferenciada. A praia Ágata também é incrível, pois nela não há areia, mas milhares de pedras arredondadas de diferentes cores e era uma terapia escutar o barulho das pedras rolando com o vai e vem das ondas. Na região vimos os primeiros pelicanos e lobos marinhos.
A viagem foi descendo próximo à costa e logo chegamos à praia La Virgen, que é considerada uma das mais bonitas do Chile. Situada naquele deserto monocolor, ela contrasta com suas águas azuis e límpidas. A ideia era aproveitar a tarde ensolarada para dar um mergulho, mas as águas do Pacífico definitivamente não são como as do Atlântico que margeiam o Brasil. São geladas para pinguim nenhum botar defeito. Mas encaramos, todos nós, alguns mergulhos, para espantar de vez o azar que estávamos tendo com nosso carro. Ah, como era bom estar de volta a natureza ao invés de mecânicas.
Acampamos em Punta Rascamoño e seguimos rumo ao sul, até chegar a uma cidade pesqueira chamada Huasco. Era domingo e o clima convidava a um passeio pela orla, onde havia uma feirinha de produtos artesanais. Almoçamos ceviche de salmão e um dourado grelhado, muito gostoso. No píer ao lado, um agito de pessoas nos chamou a atenção. Era o lugar onde os pescadores jogavam no mar as cabeças e partes internas dos peixes e quem fazia a festa eram os lobos marinhos, que pareciam estar acostumados com a fartura, de tão gordos que estavam.
Ao sul de Huasco, a estrada se afastou da costa e nos fez subir bastante em altitude. Optamos por um atalho que nos levaria na direção de La Serena, que passa pela Cuesta de Totora, com diversas curvas, num vale inóspito, onde os únicos moradores devem viver da mineração. Só pode, pois não havia mais nada além de deserto. Em Carrizalillo voltamos para a costa, e ali pudemos observar a tática que as gaivotas utilizam para comer caranguejos: elas os pescam com o bico, alçam voo até uma boa altura e os deixam cair nas pedras, para matá-los, e talvez quebrá-los, ficando mais fácil o banquete depois. Havia muitas carcaças de caranguejos ao longo da praia. Essa praia também ficou marcada pelo vento. À noite, parecia que estávamos dormindo em um barco, de tanto que o carro chacoalhava.
A aridez do deserto é um ambiente propício para o cultivo de oliveiras. Por muitos lugares, vimos plantações destas árvores e nas vilas sempre havia uma vendinha onde podíamos comprar azeite de pequenos produtores. E parece que a tradição vem de longa data, pois na cidade de Los Choros havia uma igrejinha construída em 1600.
La Serena foi a primeira grande cidade desde Copiapó. A mais esperada pela nossa filha Serena, devido ao nome. Passeamos pela Avenida del Mar até Coquimbo, onde além do mercado de peixes, fomos até o Forte Lambert, construído no século XIX para defender a baía na guerra contra a Espanha. La Serena é a segunda cidade mais antiga do Chile e tem um centro histórico muito bonito. No Museu Arqueológico há um Moai original que foi presenteado à cidade, além de uma coleção riquíssima de peças em pedra e cerâmica das culturas Molle e Diaguita.
Tomamos o caminho de volta para a Argentina pelo Vale Elqui. Um lugar que, diferentemente das terras desertas ao norte, é verde, especial para vinícolas e cultivo de frutas como a cereja, que chegamos a comer por menos de 10 reais o quilo. Esse é um dos lugares mais visitados do país, tendo a cidade de Vicuña como o coração do vale.
Além de toda a beleza natural, acredita-se que a região esteja relacionada a fenômenos extraterrestres. Seu céu é um dos mais límpidos do Hemisfério Sul, por isso, onde quer que se olhe nas montanhas ao redor, vê-se construções ovaladas onde estão instalados os observatórios astronômicos. É único no mundo.
Nossa oportunidade de contemplar planetas e estrelas distantes foi na vila Diaguita, através de dois telescópios eletrônicos da Amatista Travel. Como o sol se punha tarde na época em que estivemos lá, a observação também começou tarde da noite. E, ao chegar ao observatório, já percebemos o cuidado do Ivan, dono da agência, com nossos olhos, que precisavam se acostumar com o escuro, então a iluminação era vermelha. Vimos, através dos telescópios, a Lua, Vênus, Júpiter com suas quatro luas e Saturno com seus anéis. Depois contemplamos a nebulosa de Órion, as Nuvens de Magalhães, bem como outras constelações. Uma bela de uma aula de astronomia que acabou com a contemplação do céu a olho nu ao som de uma sonoterapia. Saímos com vontade de saber mais e mais sobre nosso Universo.
O último dia no Chile, nessa passagem, continuamos vale acima, contemplando as lindas plantações de uva nas encostas das montanhas para a produção de pisco e vinho. Quanto mais subíamos para alcançar o Passe Água Negra, mais exótica ficava a paisagem, onde o verde deu lugar a montanhas desérticas multicolores, de uma beleza e colorido sem igual. Até que chegamos à divisa do Chile com a Argentina, a 4.753 metros de altitude.
Sim, é um alívio descobrir a causa de tudo isso e poder seguir adiante.
mundoporterra
Foi trabalhoso más achou a causa da quebra, agora podem seguir nesta ótima expedição que está acontecendo.
Paulo