05/12/2024 a 13/12/2024
Saímos de Diaguita, Chile, a cerca de 800m de altitude rumo ao Passe Água Negra, que seu ponto mais alto fica a 4.753m acima do nível do mar, considerada a fronteira mais alta entre o Chile e a Argentina. Ao contrário da subida ao Passe Abra el Acay (4.895m), que fomos aclimatando por dias, ali subimos quatro mil metros em horas. O resultado: um silêncio nada confortante dentro do carro. Algo anormal quando se tem a bordo uma criança de seis anos. A Serena não passou bem, estava calada, pálida, fraca e sonolenta quando chegamos na parte mais alta.
Uma das características marcantes desse passe são as formações de gelo que permanecem até mesmo no verão, chamadas “penitentes” pelos locais. Há tanto acúmulo de neve, que o paredão branco na beira da estrada era mais alto que o nosso carro. Queríamos parar para contemplar aquela beleza única, também fotografar e filmar, mas não tivemos escolha, baixamos o mais rápido possível para que a Serena não sofresse tanto com a altitude. Nossa sorte era que do lado Argentino a descida foi abrupta e em alguns minutos baixamos 500m. Ficamos o tempo todo conversando com a Serena para que ela se mantivesse consciente e interagisse conosco, até que finalmente voltou a reagir e a ficar corada.
Normalmente é na fronteira do Chile que as restrições quanto aos alimentos frescos são rigorosas, mas dessa vez fomos surpreendidos na entrada da Argentina também. O agente aduaneiro quis inspecionar o carro por dentro bem quando o trinco da porta do motorhome havia quebrado. Dissemos que podia pular pela cabine, mas ele aceitou que entregássemos as comidas restritas na confiança. Poupamos uns abacates, temos que confessar, pois são muito caros na Argentina e para não ter que cometer o sacrilégio de jogar tanta comida fora, pedimos para consumir alguns dos alimentos ali mesmo. Autorizados, fizemos um lanche da tarde na mesa da aduana – sanduiche com bolacha, queijo e presunto e cenoura crua, que a Serena adora.
Entrávamos na Província de San Juan, região responsável por 16% da produção nacional de vinhos, mas que poucos sabem pois acaba ficando ofuscada pela província vizinha de Mendoza. Em San Juan está a Cordilheira de Ansilta, que nos seus 40 quilômetros de extensão há sete picos acima de 5.000m acima do nível do mar e abriga o imponente Cerro Mercedário (6.720m), que é o quarto pico mais alto da Argentina. Sua população é pequena e um ar de faroeste paira por lá. Vez ou outra cruzávamos com cavaleiros e seus cavalos, que desfilam trajados com roupas tradicionais, alpargatas e boinas ou os víamos a pé pelas vilas. Bonito de se ver.
Nos dirigimos para a praça de Las Flores, onde pernoitamos. Durante o dia, estava desértica, mas com o entardecer o movimento começava e ia até tarde da noite. Da janela de nossa casa, assistimos o ensaio de danças gaúchas e o movimento das famílias locais. Noutro dia, após lavar roupa, fazer compras e trocar dinheiro, seguimos viagem ao sul. Pegamos a RN 149, estrada de chão ruim, com muitas costelas de vaca e pedras soltas, acompanhando a imponente cordilheira a nossa direita até Calingasta. Num acampamento no meio desse trajeto, pudemos contemplar um céu repleto de estrelas. Com cerca de 300 dias de céu límpido, San Juan é considerada a capital argentina do Turismo Astronômico, assim como o Vale Elqui no Chile.
Os campings agora estão caros na Argentina, mas em Barreal nos registramos no Camping Municipal onde passamos dois dias. Assim que achamos nosso local de parada, colocamos as roupas de banho e fomos direto dar um mergulho na pileta (piscina em espanhol). Era dar um mergulho e sair, de tão gelada que estava a água, mesmo com sol. Enquanto a Michelle aproveitou para faxinar, a Serena correu pelo camping com os novos amigos e o Roy fez o que ele mais gosta de fazer no momento: esculpir. Desde que iniciamos a viagem, ele vem coletando madeiras distintas no caminho e já que não pôde trazer a motosserra, trouxe pequenas ferramentas para esculpir colheres de pau. Ali no camping ele trabalhou em uma colher feita com madeira de oliveira, que ganhou de um fabricante artesanal de óleo de oliva no Chile. Nos entretemos tanto com os afazeres que perdemos (por 10 minutos!) de assistir uma procissão a cavalo para levar uma Santa até seu altar. Ainda tivemos a sorte de ver alguns cavaleiros reunidos, mas o grande movimento já tinha acabado e a Santa já estava em seu lugar…
Notamos que muitas ruas e praças das vilas por onde passávamos na Argentina levavam o nome de San Martín. Se não existisse uma rua ou praça, haveria um monumento em homenagem a ele. José de San Martín foi um general argentino que liderou uma campanha para a independência da Espanha, participando ativamente da libertação da Argentina, Chile e Peru. A estratégia de San Martín foi de levar várias tropas ao Chile, por diferentes passes, para confundir os adversários e persuadir mais aliados para a sua campanha. Uma das cavalgadas mais simbólicas da região é o famoso Cruze dos Andes, seguindo a rota sanmartiniana pelo Paso de los Patos, a qual percorre os mesmos caminhos traçados pelo general quando ele cruzou estas altas montanhas com seu exército em 1817. Este foi, também, um dos caminhos percorridos pelo naturalista Charles Darwin em sua exploração da América do Sul.
Ficamos imaginando o quão espetacular deve ser realizar essa travessia de 100 quilômetros a cavalo, cruzando as montanhas acima dos quatro mil e quinhentos metros de altitude por uma semana. Nós, dessa vez, nos contentamos com uma cavalgada de duas horas pela pré-cordilheira. Partimos os três – Serena montada na Paloma, Michelle no Gordo e Roy no Raio – guiados por Martín (infelizmente não era o San Martín) pelas estradas da vila até entrarmos nos sobes e desces das trilhas nos arredores de uma formação chamada Teta Colorada. Pudemos viver um pouco do sentimento das tropas de San Martín, passando com seus cavalos pelas dificultosas trilhas da região e tendo de pano de fundo nada mais nada menos que a imponente Cordilheira dos Andes. A Serena, apaixonada por cavalos, estava cheia de si e voltou galopando com o pai até o ponto de partida.
Ao botar o pé na estrada, para seguir ao sul, fizemos uma parada repentina, pois um grande pássaro chamara a nossa atenção: o primeiro condor que víamos na viagem, que voava majestosamente pelo céu azul anil, passando muito perto de nós. E a próxima parada foi no Parque Nacional El Leoncito, um dos principais destinos de turismo astronômico do país, com o telescópio mais potente da Argentina. Nosso objetivo ali não era ver as estrelas, já que tivéramos essa experiência recentemente no Chile, mas sim os pumas, que habitam suas terras áridas. Mas justamente pela presença deles não pudemos explorar o parque. Segundo os guardas-parque, rondavam próximo dali uma família (mãe e filhotes) e por precaução, tanto pelos pumas quanto pela segurança dos visitantes, ninguém estava autorizado a circular pelas trilhas. De um ponto alto, varremos as montanhas com nossos binóculos até o sol se pôr as 20h35, mas é praticamente impossível encontra-los com sua pelagem marrom camuflada na paisagem desértica monocolor.
Ao lado do parque situa-se um lugar chamado Pampa del Leoncito, uma planície de mais de dez quilômetros de extensão, onde pratica-se o carrovelismo – um triciclo a vela. Como tínhamos as nossas próprias rodas, nos divertimos fazendo zerinho naquela imensidão branca, onde inclusive a Serena teve o seu momento de motorista. Também brincamos de pega-pega, o que a Serena mais gosta de fazer. Espaço para correr não era problema.
Após dias viajando pela inóspita San Juan, chegamos na movimentada bifurcação de Uspallata. Não estávamos mais acostumados com tantos viajantes de carro e moto e com tanta infraestrutura para o turismo. Mas não é para menos, pois ali inicia a Ruta Nacional 7, que leva ao Paso de Los Libertadores, que passa ao lado da maior montanha das Américas, o Aconcágua (6.962m). Foi para lá que nos dirigimos.
A estrada acompanha o rio Mendoza e sua paisagem é dramática logo de início. Quanto mais subíamos, mais imponentes ficavam as montanhas ao nosso redor. Fomos nos deparando com diversos marcos históricos, desde a época dos incas até os tempos atuais. O primeiro deles foi a Ponte Picheuta, declarada Monumento Histórico Nacional. Desde o século 18, esta pequena ponte de pedras construída por ordem do vice-rei do Chile Ambrósio O’Higgins ligou a Capitania Geral do Chile ao Vice-reinado do Rio da Prata. Nas suas proximidades, as ruínas de uma fortificação também são o testemunho dos importantes eventos históricos ligados aos feitos de San Martín.
Mais adiante uma outra ponte impressiona: a Puente del Inca. Ao contrário da anterior, esta formou-se de forma natural durante milhões de anos, com o acúmulo de minerais sobre a neve e gelo e os efeitos da erosão. Uma lenda conta que um chefe Inca viajou até ela para ser curado nas águas termais que brotam de sua encosta, por isso seu nome. No começo de 1900 foi construído um hotel que usava as águas termais e minerais para tratamentos terapêuticos. Fazia muito bem para a saúde. Porém o hotel fechou e o acesso a ponte também foi interditado, pois com o grande fluxo de turistas, ela corria risco de ruir. O Roy, em sua passagem por aqui em 2001, ainda teve o privilégio de se banhar em suas águas; nós, em 2024, só pudemos admirá-la de longe com suas tonalidades laranjas, amarelas e ocres devido a alta concentração de enxofre.
Mas o grande atrativo da região ainda estava por vir, o Parque Provincial El Aconcágua. Dirigimos um quilômetro até o estacionamento onde deixamos o carro para seguirmos a pé a 2.860 m.s.n.m. Os escaladores que vem a região tem uma longa preparação para subir o Aconcágua. São meses anteriores de preparo físico, psicológico e aclimatação para depois passarem semanas na montanha até o ataque ao cume e seu retorno. Na nossa família, não é diferente. A preparação para deixarmos o carro também é sempre longa, mesmo que seja somente para fazer uma caminhada de poucos quilômetros. Comida, água, protetor solar, roupas para frio, equipamentos, muitos brinquedos e mochilas para carregar tudo. Mas o mais importante é a preparação psicológica para motivar a Serena no caminho de ida e o mais difícil sempre, a volta.
Começamos a caminhar as 11h30 e foram apenas 2,9 quilômetros de ida com 188m de ascensão. Nada!, comparado aos mais de 30 quilômetros de distância e 4.265m de desnível enfrentados pelos alpinistas para conquistar o cume. Isso considerando a rota mais fácil. Tivemos a sorte de pegar um dia lindo, sem uma nuvem sequer no céu. Passamos por lagoas espelhadas, com paradas em alguns mirantes e o gigante Aconcágua estava sempre ali, na nossa frente, parece que nos chamando. Não tem como disfarçar a vontade de subir até o seu topo. Nosso ponto final foi a primeira ponte pênsil (ponte colgante em espanhol): com criança pequena, não éramos permitidos ir além. Aquela simples ponte sobre o rio los Horcones nos separava de um mundo diferente, o mundo das altas montanhas que poucos tem o privilégio de acessar.
Nos protegemos do vento atrás de algumas pedras para lanchar. Comemos frutas, ovos cozidos e chocolate de sobremesa, olhando aquele colosso a nossa frente e imaginando que lá no alto haveria alguém escalando-o e contemplando belezas que só se revelam aos que se submetem ao esforço de ir até lá. Ao descerem do cume, talvez se sintam deslocados, pois é difícil encontrar quem compreenda a magnitude do que acabaram de viver. Aconteceu isso conosco ao retornarmos de nossas voltas ao mundo. Como traduzir tudo aquilo que vivemos? Voltamos para a nossa vida normal, mas ela nunca mais foi a mesma.
A volta era sempre mais difícil. Não podíamos demorar, pois logo iria escurecer. Cansada, a Serena precisava de motivação para caminhar, ainda mais contra o vento. O encontro com mulas, que retornavam do acampamento base, para onde levaram mantimentos aos escaladores, ajudou. Demos a Serena uma mini câmera e ela corria na frente dos grupos de mula para poder filmá-las. Assim, aquela 1h10min de retorno voou.
Chegamos sãos e salvos ao nosso carro casa, mas não é o que acontece com alguns escaladores, que nem chegam a retornar de sua tentativa de escalar uma das montanhas mais difíceis do mundo. A média é de duas mortes por ano. Muitos dos corpos são enterrados no Cemitério de los Andinistas, que fica ali nas imediações.
Este cemitério foi criado no final do século 19 para que fossem enterrados os trabalhadores que não resistiam ao árduo labor da construção da ferrovia Transandina, que ligava Mendoza ao Chile. Durante o século 20, outras pessoas passaram a ser enterradas ali, como civis da região e montanhistas, cujas famílias não vieram buscar os seus corpos. Posteriormente outros pediram para serem enterrados nele caso não regressassem da montanha. Escaladores do mundo todo, inclusive o primeiro argentino a escalar o Aconcágua, descansam nesse cemitério.
Acompanhando a velha ferrovia abandonada, chegamos a Las Cuevas. Infelizmente a subida ao Cristo Redentor, que fica a 3.850 m.s.n.m, de onde se tem lindas vistas da cordilheira, estava fechada. Mais de cinco metros de neve, em pleno dezembro, impediam a passagem de carros. Nos restou passar por um longo túnel, para do outro lado vermos a luz brilhar no Chile – era o Paso los Libertadores (3.185 m.s.n.m), um dos mais movimentados devido a sua proximidade a capital chilena.
Entramos com o carro por uma rampa dentro de um prédio que parecia uma nave espacial. Ali, protegidos das intempéries do clima externo, realizamos todos os trâmites fronteiriços de imigração e aduana e logo já estávamos aptos a seguir viagem. Regressamos ao Chile com apenas um intuito: compras! A capital Santiago oferece bons preços, se comparado ao Brasil, em questão de roupas e equipamentos de montanha e escalada. Faríamos um bate-volta. Num dia descemos os caracoles, noutro fizemos compras e no terceiro dia subimos novamente aquelas 29 curvas (contadas uma a uma com a Serena em espanhol) que serpenteiam a encosta íngreme dos Andes. Chegamos a contar também 17 caminhões subindo ao mesmo tempo, cada um em uma parte diferente da serra, num movimento hipnotizante de vai e vem em suas curvas.
Cruzamos mais uma vez o Paso los Libertadores e descemos toda a RN 7 até Uspallata, admirando as belezas da cordilheira de outros ângulos, com paradas para apreciar a paz transmitida pelo Cerro Penitentes (4.356m) e os condores que deram o ar de sua graça.
Uspallata foi mais uma vez usada como ponto de organização para, então, continuarmos nosso caminho ao sul pela famosa região das vinícolas de Mendoza.
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