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Diário de Bordo 33 – Nepal 2

Diário de Bordo

(14/03/2008 a 06/04/2008)

15 dias caminhando por cerca de 220km das trilhas do Circuito Annapurnas (Himalaia) em um cenário e cultura de deixar as pernas bambas, fizeram com que a ordem das melhores experiências de nossa viagem ou até de nossas vidas mudasse!!!

As belezas deste incrível lugar, representadas pelas pessoas, vilas, vales, rica fauna e flora acabam sendo multiplicadas por cada metro que se sobe e desce nas antigas trilhas deixadas pelos comerciantes Nepaleses e Tibetanos, iniciando em 790 metros de altitude e seu ponto mais alto, o Thorung Pass, com 5.416 metros de altitude ao nível do mar. Isso sem falar nas montanhas como o Pico Annapurnas I (8.091m), que foi o primeira montanha com mais de 8.000 metros a ser escalada; a magnífica pirâmide de gelo Dhaulagiri (8.167m); Machhapuchhare (6.997m), considerada por muitos a montanha mais bonita do mundo; Manaslu (8.156m); Gangapurna (7.454m) e dentre muitos outros.

E nossa história por aqui começou ainda em Pokhara, onde compramos nossas permissões, alugamos dois sacos de dormir para temperaturas baixas e compramos uma bota de escalada que segundo o vendedor, não era falsificada, hehe, pelo contrário, era verdadeira mas somente em 80%… e quando perguntamos sobre os outros 20%, o mesmo disse: “Isso é extra!!!” Achamos um local seguro para deixar o Lobo e partimos com um ônibus local até quase Besisahar, onde começaria a caminhada. Dissemos quase Besisahar, pois uns 10km antes de chegar lá, após exaustivas 4 horas num aperto danado, acabou o combustível do ônibus. Sorte nossa que um pessoal bacana de uma van que se dirigia para o mesmo local nos deram carona sem custo nenhum, , além do típico chapéu nepalês como presente.

E a rotina começou: levanta cedo, empacota as mochilas, toma um cafezão e pé na estrada. Teve dias que caminhamos menos, outros mais, mas uma coisa é certa… 220km tiveram que ser divididos em 15 dias, fazendo-nos caminhar em uma média de 14,67 km por dia. Quanto as mochilas, até que nao estavam tão pesadas, pois o legal do Annapurnas é isso, ou seja, as vilas ao longo do trajeto fizeram com que não precisássemos levar barraca e comida, fazendo-se necessário apenas equipamentos pessoais como: roupa, saco de dormir (para frio), equipamento fotográfico e filmadora + seus devidos carregadores, utensílios de higiene pessoal e um pouco de dinheiro. Uma média um pouco acima dos 10 dólares por dia nos deu casa e comida ao longo de todo trajeto. Também é possível fazer esta caminhada com guias e carregadores, mas por uma questão de liberdade e economia, fizemos o papel de guia, carregador e cliente.

Primeiro dia, em 17km, caminhamos por estradas, trilhas, pontes que pensam e tudo abaixo dos 1.000 de altitude, a não ser no finalzinho, onde um tope meio inclinado nos fez subir, subir, subir até 1.310 metros, quando chegamos em uma linda vila chamada Bahundanda, e esta já isolada por não possuir acesso de carros. Começamos a procurar por um lugar barato para dormir e logo já descobrimos suas estratégias de segurar o cliente, onde os mesmos ofereciam o quarto totalmente de graça, desde que jantássemos e tomássemos café da manhã na própria pensão. Foi bom ter chego naquele horário, pois após pisar dentro de casa, um pé d’água caiu e o frio veio junto.

Americanos, Suíços, Franceses, Irlandeses, Ingleses, Australianos, Escoceses, Sul-Africanos e Nepaleses foram as amizades que fizemos durante o trajeto. Como caminhávamos em mesmo sentido e com planos de deslocamentos semelhantes, cruzávamos por quase todos os dias e já foi no segundo dia que os conhecemos.

Neste dia foram apenas 12km mas parecia que a trilha não acabava mais, pois subia, descia, subia, descia até que chegamos em Chamje (1.385m), vilazinha situada na encosta de um precipício e de onde podíamos apreciar uma linda cachoeira diretamente do quarto de nossa segunda pensão. Um banho gelado e cama, pois o cansaço nos pegou em cheio.

O sol malmente aparecia e já estávamos na trilha. Terceiro dia (13km) subimos bastante, cerca de 800 metros e um rio altamente congelante, proveniente do degelo das montanhas, nos acompanhava pelo vale. Devido ao frio, o rio não possui peixes!

No decorrer de quase todos os dias de caminhada, tropas de mulas caminhavam conosco ou em sentido contrário. Elas são responsáveis por parte do abastecimento de todas estas vilas por entre as montanhas, pois acesso de carro ficou para trás e faz tempo. Carregadores homens fazem o abastecimento da outra parte, onde apenas com uma tira sobre a testa, eles transportam facilmente entre 25 a 30kg. Mas infelizmente, como diz o Sergio Reis em sua musica “Mágoa de Boiadeiro”, o progresso que vem pela frente tende a tirar um pouco desta magia, pois em cinco anos, provavelmente, estradas tomarão conta das trilhas e possivelmente estes bravos carregadores e suas mulas perderão seus empregos.

O quarto dia da caminhada teve um ótimo motivo de gozação, mas um motivo bem doido. Devido as manias bestas de querer perambular quando esta dormindo, um cidadão despencou de sua cama sem ao menos poder se proteger com suas mãos, quando as mesmas estavam travadas dentro do saco de dormir… e o narigão antes de encontrar o chão, ainda deu de raspão em uma mesinha de cabeceira, hahaha!!! E neste dia, como duas mulas seguindo as próprias mulas, subimos um incrível desfiladeiro onde bem do alto (+/- 2.500), víamos um pouquinho do 7 maior pico do mundo, o Manaslu… que se escondia por detrás das nuvens. E quando chegávamos em Chame, após os 14km deste dia, podíamos ver ao longe o morro Annapurnas II, com seus 7.937 metros de altitude. Impressionante beleza!

E interessante que a cada dia que passa e a cada metro que subimos, a natureza nos traz uma surpresa, mas o que aumenta constantemente é a neve nas montanhas. E assim como a neve, aumentam os preços, pois o abastecimento destas vilas mais remotas fica cada vez mais difícil, demorado e custoso. O frio nesta altura também já passou do limite de conforto, principalmente a noite, logo após o sol ir embora.

O quinto dia da caminhada ficara em nossas memórias por sua imensurável beleza. Foram quase 15km sempre em ascensão, passando ao lado de lindas montanhas, verdes bosques, rios cristalinos, etc… mas o que nos acompanhou por quase todo o trajeto foi um imenso paredão chamado Paungda Danda, resultante de uma poderosa erosão glacial.

O Circuito Annapurnas se situa muito próximo ao Tibet e por isso, sua influencia por lá e muito forte, principalmente em se falando de religião. Diversas rodas de oração compostas por vários cilindros sustentados por um eixo são colocadas por entre as vilas, onde os fiéis circulam-as sempre pela esquerda rodando cilindro por cilindro e fazendo suas orações. Milhares de bandeiras coloridas também são estendidas em pontes, templos, estupas… o que traz a paz e a boa sorte. Em algumas das rodas de oração, são colocados as Mani Wall, ou seja, pedras escavadas em antigas linguagens que manifestam suas orações.

Logo na segunda hora de caminhada do sexto dia (20km), após um breve descanso ao lado de uma roda de oração, subimos, subimos, subimos sem trégua. Foram quase 500 metros em um zigue-zague sem fim, mas para um visual sem igual. E esse visual, Annapurnas II, III e IV e ainda o Gangapurna (7.937m, 7.555m, 7.525m e 7.454 respectivamente) nos foi presenteado no lugar do chocolate, pois era Domingo de Páscoa. E o mesmo tanto que subimos, do outro lado descemos e por dentro do grande vale Marsyangdi Khola seguimos até Manang, maior vila da região e onde teríamos um dia de descanso e aclimatação.

Cabe aqui ressaltar que nos primeiros dias de caminhada, ficávamos mesmo cansados. Fazíamos mais paradas e cada kg em nossas costas era possível de perceber. Mas quando os dias vão passando e não temos outra opção a não ser caminhar, nosso corpo vai se acostumando, fortificando, aclimatando e no final, subidas ou descidas que em uma situação normal seriam algo fora do comum, acabam ficando até, de certa forma, fáceis. Isso ficou bem evidente quando no sétimo dia em Manang, dia proposto para descanso, subimos e descemos +/- 1.000 metros só para dar uma passeada e melhorar a aclimatação de nosso corpo. Tá certo que estávamos sem as mochilas, mas subir de 3.500 até 4.500 e depois descer o mesmo tanto, não fazia parte de nossa rotina.

Daqui para frente, os próximos três dias seriam totalmente focados em uma única missão, a de cruzar o Thorung Pass, que se situa a 5.416 metros acima do nível do mar. E os efeitos da altitude começaram a ficar evidentes no oitavo dia de caminhada (10km), quando uma menina atingida pelos sintomas do mal da montanha vinha em sentido contrário sendo carregada em uma maca por quatro carregadores. Além dela, neste dia, helicópteros sobrevoaram nossas cabeças para mais dois resgates ao redor do passe, o que deixou alguns mochileiros amedrontados, fazendo-os desistir do passe e voltar aquele caminhozinho de 7 dias até a primeira locomoção sobre rodas.

Em situações como estas, quando se esta acima dos 4.000 de altura, a quantidade de oxigênio é mesmo baixa, pois a cada 1.000 que se sobe do nível do mar é uma atmosfera a menos para o corpo resistir. A 5.416m (altura do passe), são 5,4 atmosferas a menos, portanto, já basta o esforço físico para consumir o oxigênio existente. Se o stress e o medo vierem junto, não existira oxigênio suficiente nem por reza brava.

Ainda antes de chegar em Letdar (4.200m), local onde passaríamos a noite após o oitavo dia, avistamos de perto os primeiros Yaks, raça bovina das montanhas que possuem pelagem bastante comprida devido ao frio de seu habitat. São encontrados no Himalaia, Ásia Central, Platô do Tibet e no norte da Mongólia.

E por falar em Yak, naquele dia que chegamos em Letdar, ficamos sabendo pelos nepaleses locais que um Yak jovem fora atacado na noite anterior por um raro Leopardo da Neve, a uns 500 metros de nosso alojamento. E como seus rabos peludos são objetos de decoração, não deu outra, o rabo daquele jovem já foi para nossa mochila.

E o frio aumenta no nono dia. De Letdar (4.200m) fomos até Thorung Pedhi (4.400) em uma caminhada de apenas 5km. Nossas mochilas ficaram por ali mesmo e ainda neste dia, fomos até o High Camp (4.850m), somente com o objetivo de melhorar a aclimatação. Até poderíamos pernoitar por ali, mas o risco seria grande de durante a noite, termos que descer sem mais nem menos, por sintomas causados pela altitude. Ainda do High Camp, decidimos subir mais uns 100 metros, até uma pequena estupa no topo de uma montanha, para contemplar um dos melhores visuais de todo o percurso. Indescritível a sensação de estar naquele lugar!!! Nosso almoço no High Camp foi dois deliciosos pães tibetanos recheados com queijo de Yak derretido.

No dia do passe, décimo dia de caminhada, muita gente planejava começar as 3:30, 4:00, 4:30 e assim por diante, pois nesse dia teríamos que subir dos 4.400 até 5.416 metros em uma distância de 6 quilômetros e ainda descer de 5.416 para 3.800 em um percurso de 10 quilômetros. Isso sem contar que boa parte das pernadas seriam em pura neve. Apesar das distâncias e das altitudes, decidimos partir pelo amanhecer, pois somente tínhamos uma lanterna.

Partimos exatamente as 6:15 da manhã e as 10:15 deste mesmo dia estávamos mais felizes do que nunca cruzando o Thorung Pass, a 5.416 metros de altitude onde também deixamos as nossas bandeiras de paz e boa sorte. Tiramos milhares de fotos em todo esse trajeto, pois neste dia fomos contemplados com um dos dias mais azuis de toda a caminhada. Definitivamente foi um dia perfeito!!! Mas como tudo que sobe desce e o frio não era dos menores, partimos já sentindo saudades deste fascinante local. As fotos não diminuíram e nem, tão pouco, o sorriso. O caminho de descida foi muito forte, mas, devagarzinho, descemos e chegamos em Muktinath pelas 3 horas da tarde.

Exatamente em Muktinath que começa a caminhada Jomsom, que, porém, ainda faz parte do circuito Annapurnas. E no décimo-primeiro, décimo-segundo e décimo-terceiro dia de caminhada, dias que eram para servir também como descanso do caminho até então percorrido, foram consecutivamente 25, 24 e 13 quilômetros. A paisagem mudou drasticamente, as chuvas apareceram e os ventos contra nos incomodaram. Mas somente de saber que estávamos caminhando pelo Kali Gandaki, vale situado entre o pico Annapurnas e o Dhaulagiri, nos deixou fascinados. O Kali Gandaki é considerado o maior vale do mundo, com um ganho vertical de 7km espaçado entre 20km.

Após estes extremamente exaustivos dias de descida, o décimo-quarto dia de caminhada nos veio como presente. Foram quase 9 horas para subir novamente 1.670 metros em nada menos que 17km e tudo isso somente com o objetivo de chegar no topo do Poon Hill (3.200m), de onde seria possível admirar mais uma vez grande parte da cadeia do Himalaia, mas desta vez de um outro ângulo. Lindas vilas pelas encostas dos altos morros e os rododendros, flor típica da região, por toda parte. Mas neste dia, sério mesmo, única coisa que queríamos era chegar no destino pois nossas pernas já não agüentavam mais.

Décimo-quinto e ultimo dia destes inesquecíveis dias, acordamos pelas 4:30 da manhã, subimos 330 metros para chegar no Poon Hill ainda antes do nascer do sol. Neve novamente por toda a parte e um frio de rasgar. E, apesar de todo este esforço, pegamos um dia nublado e conseguimos ver apenas parte das montanhas (Annapurna I e Annapurna Sul), mas mesmo assim valeu cada passo. Dali, agora, eram apenas 2.175 metros de descida em um percurso de 16km, ou seja, a maior descida em apenas um dia que já fizemos em toda nossa vida. Foi chão que não acaba mais… mas finalmente chegamos e lá, no final do percurso, decidimos ficar uma noite em uma pensão de frente para um rio onde descansaríamos e deixaríamos para pagar o ônibus de volta para Pokhara somente no outro dia pela manhã. Haja fôlego!!!

Planejávamos até fazer esta atualização do Diário de Bordo ainda de Pokhara, mas como o Nepal estava prestes a passar por eleições históricas, decidimos cair fora de lá antes que os Maoístas voltassem com seus protestos e ataques a seu governo, o que poderia causar bloqueios nas estradas, prejudicando nossa saída. Neste momento já estamos novamente na Índia, em sua capital Nova Délhi onde já encaminhamos documentação para nosso visto para o Irã.

Enfim, falando novamente do Circuito Annapurnas,… sem palavras. As fotos explicarão melhor o fascínio deste lugar!!!

E como dizem os tibetanos: “Om mani padme hum” (Boa sorte em uma vida longa)

Álbum: Nepal 2

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