(24/10/2014 a 06/11/2014)
De volta ao Brasil!
Calma, não se assustem. Está tudo certo conosco e com o Lobo da Estrada. A viagem não terminou – está só começando – e entrar novamente em terras brasileiras estava em nossos planos desde o começo. Mas antes de voltarmos ao Brasil, rodamos muitos quilômetros ainda na Bolívia e temos muitas histórias interessantes para contar desse trajeto.
Vindos do Parque Nacional Sajama, chegamos em Nuestra Señora de La Paz ou somente La Paz. Esta cidade foi fundada em 1548 pelo capitão espanhol Alonso de Mendoza seguindo ordens do vice-rei do Peru para celebrar a restauração da paz naquele vice-reino. Logo, o local da vila fora transferido para um vale profundo e extenso a beira do rio Choqueyapu, que tinha melhor clima e geografia para o estabelecimento urbano, além do rio ser muito rico em ouro. Hoje esse grande cânion está tomado pela capital mais alta do mundo (3.660m.a.n.m) e nas planícies altas ao seu redor formou-se uma segunda grande cidade, chamada El Alto (4.100m.a.n.m.). Nela está localizado o aeroporto internacional para onde nos dirigimos em busca de um local seguro e tranquilo para pararmos nosso carro e ali morarmos alguns dias.
Avistar a capital administrativa da Bolívia a partir da cidade de El Alto é algo espetacular e imperdível. Milhares de construções em tijolo cru se espalham pelas paredes do cânion até quatrocentos metros abaixo e tem como pano de fundo a Cordilheira Real, com algumas das montanhas mais altas do país. Nos arredores da Plaza San Francisco estabeleceu-se a parte turística com hostels, restaurantes, bares, lojas de souvenirs e agências de turismo. Nela, cruza-se com viajantes de todas as partes do mundo. Subindo a Rua Santa Cruz muda-se drasticamente do turístico para a verdadeira La Paz, com mercados de todos os tipos e de tudo o que se possa imaginar. Visitar esses mercados no sábado é muito interessante, pois é quando milhares de locais circulam pelas ruas fazendo suas compras. Quem tem vez é o pedestre e os carros vão costurando seu caminho em meio a eles. Outro fato interessante sobre esse país é que a Bolívia não para, os mercados vão de domingo a domingo, sem trégua aos feirantes.
A principal conexão entre as duas cidades irmãs, La Paz e El Alto, é feita através das diversas vans que sobem e descem a autopista. Levam em torno de 30 minutos para fazer o trajeto. Mas recentemente as cidades receberam um novo meio de transporte público: três linhas de teleférico que por apenas três bolivianos (aprox. R$ 1,00) e 7 minutos ligam a base ao topo do cânion. Usamos esse transporte uma vez e fomos presenteados com uma vista lindíssima ao entardecer. Passamos por cima das casas e é incrível como se aglomeram penduradas nas paredes do cânion. Em alguns lugares o acesso é somente por escadas, similar as favelas do Rio de Janeiro, mas noutros, as ruas deixam a Baldwin Street da Nova Zelândia no chinelo (considerada pelos neozelandeses a rua mais íngreme do mundo).
Além de visitar La Paz, nosso objetivo na região era escalar uma montanha acima dos seis mil metros de altitude, quebrando assim nosso recorde que tínhamos feito no Nepal, de 5.416m. A montanha escolhida foi o Huayna Potosí (6.088m) devido a sua beleza e maior facilidade para iniciantes em altas montanhas. As agências oferecem duas possibilidades de ascensão: dois ou três dias. Escolhemos a primeira, pela previsão do tempo e por já estarmos, de certa forma, aclimatados com a altitude, estando a +/- 4.000 metros por quase três semanas.
No domingo de eleições presidenciais no Brasil o Lobo nos levou, junto com nosso guia Hilárion, ao Acampamento Base do Huayna Potosí, localizado a apenas 30km da capital. Deixamos o carro a 4.772m, colocamos as mochilas nas costas com nossos pertences pessoais e equipamentos técnicos fornecidos pela agência (botas plásticas e polainas para gelo, capacetes, piolets, grampões e cadeirinhas) e iniciamos a subida de 3 horas até o Acampamento Alto, a 5.130m, por um caminho íngreme e com muita pedra solta. No caminho avistávamos ao nosso lado esquerdo o efeito do aquecimento global, pelo rio que se formou da água derretida do Glaciar Viejo.
No Acampamento Alto, uma espécie de refúgio, o frio já se intensificava e por volta das 5h30 da tarde já estávamos jantando, pois logo em seguida foi dado o toque de recolher, já que teríamos tão poucas horas de sono. Mas nossa tentativa de dormir não foi boa. Além de não estarmos acostumados a dormir tão cedo, a altitude dificultava as coisas, fazendo com que o coração trabalhasse mais rápido para compensar a falta de oxigênio.
À meia noite em ponto as luzes se ascenderam, pois precisávamos levantar. Leva-se em torno de 6h para se chegar ao cume, então, para estar lá ao amanhecer, quando o tempo geralmente está mais limpo, é preciso iniciar a caminhada a uma da manhã. O Roy não estava muito bem, parecia que comeu algo errado. Tomamos “café da manhã” e logo nos equipamos para iniciar a subida, presos ao guia por uma corda de segurança. A caminhada iniciou-se numa subida pela neve muito íngreme e a instrução de nosso guia era: devagar e sem paradas. Não víamos nada além do facho de nossas lanternas, por isso, não fazíamos ideia de onde estávamos nos metendo. As vezes, com os relâmpagos que clareavam o horizonte, víamos a silhueta do cume a nossa frente. Abaixo, algumas filas indianas de luzes de lanternas das outras pessoas (maioria europeus) que também ascendiam a montanha.
Revezávamos entre nós apenas uma mochila com a máquina fotográfica, água e alguns petiscos. E pela dificuldade da subida, acabamos tendo que fazer paradas. Temos que confessar que não estávamos em nossa melhor forma física. Na correria de antes da viagem e nesses primeiros dois meses na estrada, fizemos pouca atividade física.
As 3h da manhã o bicho pegou valendo. Para superar um paredão de gelo, subimos por sua crista afiada de uma inclinação muito acentuada. Sorte que não víamos a altura do precipício que ficava a esquerda, a menos de um metro da trilha. As botas pesadas e de cano alto dificultavam nessas partes íngremes, tanto que era melhor caminhar de lado. Aí o vento e as baixas temperaturas, somados as paradas que tivemos que fazer para descansar, resultaram no esfriamento das mãos e pés da Michelle, mesmo que ela usava duas luvas, duas meias e botas especializadas. Na verdade a Michelle possui uma hipersensibilidade ao frio, Doença de Raynaud, quando exposta a muito frio, seus vasos se contraem e a circulação das extremidades de seu corpo fica prejudicada. Quando atingimos a parte alta desta crista a dor dela ficou insuportável. Ela sentia como se recebesse agulhadas nas mãos e pés! Então, com o intuito de aquece-las, o guia Hilárion e o Roy colocaram suas mãos e pés gelados dentro de suas jaquetas, mais próximo as axilas (local onde o corpo libera bastante calor). A prática até ajudou, mas logo que ela voltava a colocar as botas e luvas, os pés e mãos gelavam novamente.
Era 4h30 da madrugada e estávamos a 5.800m de altitude, com o frio de -15ºC (que tendia a aumentar) e ainda faltavam 2h30 de caminhada até o cume. Bom, não hesitamos por tomar uma importante decisão: regressar. É muito difícil voltar atrás quando a vontade de vencer a montanha é tão grande, mas era o mais inteligente a fazer. Segurança vem sempre em primeiro lugar.
Iniciamos a descida e após +/- 1h o dia começou a amanhecer e a revelar os caminhos que tínhamos feito. Gretas muito profundas, penhascos muito altos, vales brancos, estalagmites de gelo, branco, branco e mais branco… um cenário que é ao mesmo tempo assustador e espetacular. Infelizmente, devido a certa pressão colocada por nosso guia para descermos, para prevenir o frio, não fizemos muitas fotos e vídeos, mas com certeza todos os registros estarão na nossa memória para sempre.
Quando chegamos ao Acampamento Alto, nossas pernas já não tinham mais forças, então mergulhamos em nosso saco de dormir para recuperar um pouco de energia. Depois, um chá quente e bora descer mais 2h até o Acampamento Base. Embarcamos no Lobo e o dirigimos até o aeroporto de El Alto. Estávamos imprestáveis, mas felizes com a experiência que tivemos mesmo não tendo atingido o cume. Bom, o que ficou foi a vontade de vence-lo. É um motivo que deixamos para um dia voltarmos a este magnífico lugar.
Foram necessários mais dois dias em La Paz para organizarmos nossas coisas antes de pegarmos a estrada novamente: lavanderia, compras, lavação e fumigação de óleo no Lobo, atualização de um novo diário de bordo, dentre outros.
Deixamos La Paz por uma paisagem muito bonita, nada incomum nesse país. Subimos até 4.670m numa região chamada de La Cumbre e depois começamos a descer por uma serra lindíssima que tinha partes de sua beleza ocultada pela neblina. Daqui não paramos mais de descer sentido a região de Yungas, onde os dois grandes ícones da América do Sul se encontram, a Cordilheira dos Andes (terras altas e secas) com a Floresta Amazônica (terras baixas e úmidas). Em três dias descemos mais de quatro mil metros de altitude.
Foi no Yungas que tivemos mais um grande desafio, dirigir os 34km da temida Estrada da Morte. Construída na década de 30 por prisioneiros, por ser o único caminho entre La Paz e Coroico, tinha um tráfego intenso de caminhões e ônibus. A largura de apenas 3.2m, a falta de pavimentação, as fortes chuvas que causavam erosões e desmoronamentos e a neblina dificultavam ainda mais o caminho. Uma média de 26 veículos caíam anualmente em seus penhascos com mais de 600m de altura, matando mais de 100 pessoas. Então, em 1995 foi considerada um dos lugares mais perigosos do mundo pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Em 2007 o governo construiu uma estrada nova no lado oposto do vale e a Estrada da Morte teve seu tráfego reduzido consideravelmente. Passou a ser um ponto turístico e a atrair milhares de visitantes. Muitos fazem este trajeto de bicicleta. Mas a estrada não perdoa ninguém, nem turistas. Várias cruzes estão em sua beirada e lembram que se cair ali é morte na certa. Não só motoristas e passageiros mas também cerca de vinte ciclistas já morreram ali.
Alguns viajantes haviam nos alertado que a Estrada da Morte estava fechada para carros particulares, sendo permitida somente a descida de bicicletas e vans locais. Ficamos tristes com a notícia, mas decidimos não acreditar nela 100%. Então, fomos lá ver se era possível ou não e pudemos desce-la sem nenhum problema.
Começamos a descida as 10h30 e logo tivemos uma vista panorâmica do vale e de grande parte da estrada, que está bem conservada. Imaginávamos que seria pior. Hoje, as cercas de madeira foram substituídas por guard-rails e em alguns lugares existem pequenas baías para dar espaço a dois carros. O sufoco de antes era encontrar um veículo grande no sentido oposto, pois aí sim a estrada ficava apertada e o risco de despencar aumentava muito. Por segurança, estabeleceu-se que quem desce dirige do lado esquerdo (mão inglesa), pois assim o motorista tem uma melhor visão da roda que beira o precipício. O Roy era quem passava o maior aperto e sustos, pois o penhasco estava sempre do lado dele. Com todas as paradas para fotografia, filmagem, contemplação e almoço totalizamos cerca de 6h para fazer o trajeto até a cidade de Yolosa.
Mas para nós a Estrada da Morte não terminou por ali. É incrível como a maioria das estradas da Bolívia serpenteiam de montanha em montanha, penduradas em penhascos de perder o fundo de vista. O governo é quem tem muito trabalho para mantê-las. A nossa descida em progressão lenta só acabou quando chegamos nas planícies baixas dos estados de Beni e Pando, quando o calor e a umidade voltaram com força total.
Em Rurrenabaque, portal de entrada da Amazônia boliviana, tivemos uma daquelas famosas dúvidas: por onde seguir. Os planos iniciais para atingir Cusco eram rumar ao norte da Bolívia, sair para o Brasil e entrar no Peru. Mas estávamos receosos das condições das estradas nessa região e também esse trajeto incrementaria 700km se comparado com a outra opção, que seria voltar a La Paz e cruzar ao Peru pelo Lago Titicaca. Depois de muita análise, optamos pelo caminho mais longo, pois o desconhecido é o que nos move.
Os primeiros 100km nos fizeram quase desistir. A estrada era dura, com muitas pedras, que tremia até o pensamento. Mas ela foi melhorando, melhorando e virou uma daquelas estradas de chão batido gostosas de se viajar, porém com muita poeira. Cruzamos uma região de alagados que é uma continuação do pantanal boliviano. Ali relembramos do pantanal brasileiro pelos bichos que encontramos: garças, tuiuiús, araras, capivaras e jacarés e também muito gado. Depois de uns 400km, tudo virou Amazônia. Partes muito conservadas, com florestas altas ao redor da estrada, mas vezes, víamos também as feridas na mata, sintomas do desmatamento.
Ambos estados, Beni e Pando, são cortados por diversos rios grandes, que quando se juntam, formam o rio Madeira e o trânsito nessa região do extremo norte da Bolívia só é possível pelo funcionamento de duas balsas que cruzam o rio Beni e o rio Madre de Dios. Foi na cidadezinha de El Sena, na beira do rio Madre de Dios e Mapuri, que nos sentimos realmente no meio da maior floresta do mundo. Dormimos no porto, a espera da balsa, onde a atmosfera tropical é intensa e bem diferente das altas montanhas da Bolívia. Aqui as mercadorias saem dos caminhões e são carregadas em barcos que as transportam pelos rios até as vilas mais isoladas no meio da Amazônia. Ali mosquitos também não dão trégua.
Mais estrada, mais poeira e fazendas cada vez maiores de gado. Depois de 850km desde Rurrenabaque, chegamos na tríplice fronteira entre Bolívia, Brasil e Peru. Poderíamos ter seguido direto da Bolívia ao Peru, mas não resistimos em dar uma resbalada no Brasil pelo Acre. Ao contrário da Bolívia, onde as pessoas são mais fechadas e é muito difícil fazer amizades, no Brasil os acrianos nos receberam muito bem. Aproveitamos os dois dias em “casa” para comprar comidas que não encontramos em outros países, além de cerveja brasileira e uma churrascaria.
Até o início do século XX o Acre pertencia a Bolívia. Pouco se conhecia sobre essa região do extremo leste brasileiro e ninguém sabia ao certo onde exatamente era a fronteira do Brasil, Peru e Bolívia. Muitos brasileiros, principalmente nordestinos, vieram para explorar os seringais e adentraram o território boliviano sem saber. Diz-se que antes de findar o século XIX, mais de 50 mil pessoas, a maioria brasileiros, habitavam o local com o único intuito de produzir borracha. A partir de 1895 os bolivianos tentaram tomar o controle deste território novamente, então houve revolta dos brasileiros e aconteceram diversos conflitos na fronteira com o poder do território passando diversas vezes do Brasil para Bolívia e vice-versa. O episódio ficou conhecido como a Revolução Acriana. Em 17 de novembro de 1903, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, o Brasil recebeu a posse definitiva da região. O território passou para o domínio brasileiro em troca de dois milhões de libras esterlinas, de pequenas terras do Mato Grosso e do acordo de construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré que permitiria a Bolívia escoar seus produtos para o Oceano Atlântico. Posteriormente foi a vez do Peru manifestar-se diplomaticamente por direitos na região, mas acabou chegando a um acordo com as autoridades brasileiras. Atualmente, o Acre continua sendo o maior produtor nacional de borracha e também da castanha-do-pará, além da intensiva pecuária e agricultura.
Em 2005 iniciou-se a construção da Rodovia Interoceânica que deu ao Brasil, pelo Acre, acesso a três portos peruanos no Oceano Pacífico para facilitar as exportações para a Ásia e é através dessa rodovia que nós também rumamos ao Pacífico peruano.
Itinerário percorrido
Fotos
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