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Diário de Bordo 41 – Tajiquistão

(19/09/2016 a 28/09/2016 e 13/10/2016 a 22/10/2016)

 

Mais um país de montanhas pela frente – o Tadjiquistão, e sua fronteira com o vizinho Quirguistão estabelece-se na crista da Cordilheira Pamir, onde há picos que superam os sete mil metros de altitude. Nós entramos por um vale e chegamos a 4.260m. Mas dirigindo pela Rodovia Pamir, já dentro do país, subimos ainda mais e alcançamos 4.665m, o ponto mais alto de toda Ásia Central acessível por estrada.

É muito bom dirigir pelas montanhas. A natureza mostra-se especialmente exótica acima dos três mil metros, árida, colorida, pouca vegetação e por isso oferece vasta visibilidade. Particularmente nas montanhas da Cordilheira Pamir, seu relevo transformava-se a cada curva, a cada novo horizonte.

Enquanto dirigíamos pelas montanhas no sudeste do país, nosso GPS nos deu uma importante informação: por pouco que não fizemos os caminhos da primeira volta ao mundo se cruzarem com os da segunda. Estávamos a apenas 150km da Rodovia Karakoram, que fica no Paquistão e que dirigimos em maio de 2008. Pela boa visibilidade daquele lugar, olhávamos as montanhas na direção do Paquistão e imaginávamos se alguma delas, eventualmente, já teríamos visto pelo outro lado, de outro ângulo. Foi uma sensação incrível.

Dizem os tadjiques que pelo pouco movimento de carros na Rodovia Pamir, este é um dos melhores lugares para se ver carneiros Marco Polo, um animal raro que habita as montanhas altas e por isso, muito difícil de ser visto. Vez ou outra parávamos o carro para vasculhar cada camada de rocha com o uso de binóculos, mas nada. Ele habita os lugares de mais difícil acesso para se proteger de predadores. E falando em predador, outro animal que habita essas montanhas é o Leopardo das Neves, conhecido também por animal fantasma, pois é ainda mais rara a oportunidade de vê-lo. Esses dois animais sempre estiveram em nossa lista, mas pelo jeito vão ter que continuar por mais algum tempo.

Há dois lugares na parte alta da Rodovia Pamir que provam que essas terras são mesmo espetaculares. Situam-se, na verdade, nas adjacentes da rodovia. O primeiro fica sentido Rankul, cidadezinha bem próxima da China, mas que no caminho até ela, ao lado esquerdo, há dois lindos lagos salgados (Shurkul e Pangkul) repletos de pássaros, que refletem as montanhas ao fundo e ao lado direito, destoando do resto da paisagem, brotam da terra rochas avermelhadas, onde podíamos dirigir por entre elas. Supomos que tivessem entre 300 e 400 metros de altura. Rodeados por paredões, nossos gritos ecoavam por segundos naquele labirinto. Ao alto, aproveitando a ascendente e as térmicas formadas no solo, abutres voavam e contemplavam as melhores vistas, talvez uma das mais bonitas de toda a Ásia Central. Se quisessem voar para a China, alguns minutos bastariam para planar até lá. Magnífico. Difícil foi escolher o local de acampamento daquela noite, se no meio das rochas ou de frente para o lago junto aos pássaros. O segundo lugar que nos encantou foi o Lago Bulunkul, situado a 3.774m de altitude, onde acampamos alguns dias depois. Ao amanhecer, sem brincadeira, se puséssemos algumas fotos que tiramos de ponta cabeça, somente olhos bem atentos diriam que estariam inversas, pois o espelho era perfeito.

A Road 66, nos EUA, é famosa por motociclistas assim como a Rodovia Pamir, que estende-se de Osh (Quirguistão) até Khorog (Tadjiquistão), é conhecida entre ciclistas. Gente do mundo inteiro a percorre pedalando, em ambos os sentidos. Se deu vontade de estarmos com nossas bicicletas?, muita! Mas quando nós a cruzamos já havia passado o verão e mesmo assim ainda encontramos muitos ciclistas enfrentando o frio. Os que ganharam o troféu foram um pai, uma mãe e três crianças viajando em apenas duas bicicletas. São australianos e somente os vimos de longe, quando preparavam um lanche na beira da estrada. Mas outros viajantes nos falaram desta família corajosa, que o pai carregava duas crianças em uma espécie de bicicleta tandem e a mãe carregava uma. Há uma grande distância entre cidades nessa cordilheira, o que os obrigava a dormirem em barracas por vários dias consecutivos, tendo que ser autossuficientes com comida e água. Que exemplo de vida essa família nos dá, especialmente porque as crianças, muitas vezes, são usadas como desculpas para as pessoas não mais correrem atrás de seus sonhos.

Logo depois que vimos a família ciclista, saímos da Rodovia Pamir para dirigir por outra estrada mais ao sul, em piores condições mas que podemos afirmar foi um dos caminhos mais bonitos que já dirigimos. Falamos do Vale Wakhan, que acompanha por centenas de quilômetros os rios Pamir e Panj na fronteira com o Afeganistão. Tivemos, nesta parte da viagem, um banho de natureza, cultura, geografia e história. Civilizações muito antigas já passaram e habitaram o vale, tendo ele sido uma das vias da Rota da Seda. No lado tadjique ainda há fortificações que eram usadas para proteger o território. O forte Yamchun, por exemplo, construído no século 12 e que ainda preserva boa parte de suas muralhas por situar-se na parte alta do vale, possui uma das vistas mais incríveis. Sentados sobre suas ruínas, nós contemplávamos três países, pois as montanhas altas da cordilheira Hindu Kush a nossa frente, que estavam no Afeganistão, já demarcavam a fronteira com o Paquistão. Para relaxar deste “lugar estressante”, a poucos metros do forte fomos nos deliciar nas águas termais de Bibi Fátima. As piscinas dos homens e mulheres são separadas, dando a possibilidade para todos irem nus se banhar. Foi engraçado, pois nós não imaginamos que os tadjiques tradicionais, que vivem da lavoura e criações, fossem tão liberais nesse ponto. A piscina das mulheres era a mais exótica, com várias estalactites na rocha, por onde descia a água quente. Havia lá, também, o buraco da fertilidade. Mulheres com intensão de engravidar devem entrar na caverna natural e beber de sua água que nas próximas semanas é tiro e queda.

As vilas do Vale Wakhan estavam sempre entre as montanhas, onde desciam os rios afluentes do Panj. Por mais que as montanhas fossem cinzentas, as vilas eram verdes das árvores e da agricultura. As casas eram de pedra e barro, bem cuidadas e as pessoas coloriam o entorno. Cores não faltavam nos vestidos das mulheres e crianças, assim como o ouro nos dentes dos homens. Um povo muito carismático e inocente. Eis o exemplo: em Langar queríamos comprar pão, mas pelas famílias normalmente fazerem seu próprio pão, não se encontrava para vender. Perguntamos a uma menina que caminhava na rua e com um sorriso no rosto, ela correu para sua casa e nos trouxe um pão fresquinho. O preço – 10 somonis. Estava caro, mas tudo bem, cada um faz seu preço e compra quem quiser. Quando iríamos paga-la, o menino mais novo que estava junto a corrigiu imediatamente! É só 5, disse ele, ficando até um pouco brabo por ela ter pedido 10. Caímos todos na gargalhada!

Nós passamos no vale numa época do ano muita bonita, quando as comunidades trabalhavam na lavoura de forma coletiva para colher o trigo. Fora o trabalho braçal dos homens, 80% da força usada ainda é animal, mas já víamos alguns tratores, que ficavam estacionados em ladeiras ou barrancos, pois por serem máquinas antigas, talvez nem tivessem mais baterias para a partida.

Passamos por Tuggoz justo quando um homem estacionava seu trator no barranco ao lado da estrada. Ele nos fez um sinal como se quisesse algo. Paramos para ver se precisava de ajuda, mas ele sorriu mostrando seus dentes de ouro e nos disse: “Venham tomar um chá conosco”. Estacionamos o carro, o seguimos até o meio da plantação de trigo e lá nos apresentou para os outros trabalhadores, que nos olhavam da cabeça aos pés. Aliás, o trabalho parou por aquele instante e um menino foi solicitado para enviar o recado a alguma das esposas que preparasse o chá. Tentamos nos entender usando o pouco que aprendemos de russo e logo uma senhora veio com a encomenda, mas o que era para ter sido apenas um chá, virou num saboroso plov, prato típico da Ásia Central que é similar ao nosso risoto. Sentamos todos no chão ou em sacos de trigo e devoramos a comida da mesma panela, tendo em mãos apenas uma colher cada um. O chá, que foi servido após o almoço, só nós tomamos, pois os homens da colheita preferiram vodca. Terminamos a visita levando a criançada para dar uma volta no Lobo e dirigindo o trator usado para debulhar o trigo.

Depois de Tuggoz veio Ishkashin e na sequencia, Khorog, a maior cidade da região da Pamir. Foi nessa passagem por Khorog que nos preparamos para uma das mais belas experiências que tivemos nesta viagem – nossa ida ao Afeganistão, que esta descrita em incríveis detalhes neste POST. É só clicar aqui para vê-lo.

Voltamos do Afeganistão mais realizados do que nunca, mas mesmo assim, por mais algumas centenas de quilômetros, dirigimos beirando o Rio Panj, vendo o Afeganistão do outro lado, tão perto que cumprimentávamos alguns afegãos, estando nós no Tadjiquistão. Algo incrível. E a paisagem continuou magnífica, com montanhas muito altas. Como estávamos no lado tadjique, víamos mais o Afeganistão do que propriamente o país que estávamos. Neste trajeto que se seguiu de Khorog, nos fascinou a obra prima das estradas que o ser humano precisa fazer para facilitar sua vida. Haviam tantos obstáculos, montanhas, precipícios que dava medo só de olhar aquela gente trabalhando. Percebemos que nem todo o trajeto estava completo no lado afegão e quando não passavam carros, o transporte era através das mulas. Um outro mundo!

A vontade era de explorar mais e mais essas lindas montanhas, mas já era final de outubro, outono, e o frio estava cada vez mais presente. Chegou a hora de deixar as montanhas para trás e rumar para as partes baixas e desérticas com a esperança de pegar um pouco de calor. Mera ilusão!

Nossa viagem no Tadjiquistão terminou quando chegamos em sua capital Dushambe e seguimos para o Uzbequistão. Este foi um país incrível, talvez um dos mais bonitos de toda a Ásia Central e a lembrança que carregaremos dele não será denegrida nem pelos oficiais corruptos que são famosos neste país, pois frente a tanta beleza, isso é apenas um detalhe.

Veja mais sobre o Tajiquistão:

 

Itinerário percorrido

Itinerário Tadjiquistão

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