(05/11/2016 a 27/11/2016)
Seguindo nosso replanejamento de contornar o Mar Cáspio pelo norte, entramos pela segunda vez no Cazaquistão, mas desta vez no cantinho sudoeste. Para falar a verdade estávamos loucos para conhecer o estado cazaque Manguistau, que é menos explorado por estar muito distante da parte mais desenvolvida do país, mas é um dos lugares mais bonitos. A primeira vista essas terras se parecem desinteressantes – desérticas, áridas, monocolores e sem montanhas ou florestas, uma planície só. Mas o tesouro encontra-se abaixo do nível da terra, nas suas cavernas, cânions, penhascos e erosões. Ali Deus, nos pareceu, fez seu atelier de escultura natural.
Quando entramos no país nós ainda estávamos na companhia de Cyril e Armony, o casal francês que viajou parte do Uzbequistão conosco. Mas pela necessidade deles cumprirem com uma data predeterminada em seus vistos de trânsito russo, tiveram que seguir mais rápido, então, nos separamos. O máximo que puderam esperar foi até a manhã do dia 07/11 para experimentarem o bolo de aniversário do Roy, que por sinal, estava uma delícia. Dali em diante, cada carro foi para um lado… o deles para o sul e o nosso para as margens do lago Tyzbair, que até hoje não sabemos se nele havia água ou era apenas uma miragem. A medida que avançávamos para tentar nos aproximarmos do que parecia água, a argila sob os pneus do Lobo amolecia, aumentando a tensão entre nós, pois se encalhássemos, sabe lá quando conseguiríamos ajuda, pois estávamos completamente no meio do nada, sem qualquer alma viva a dezenas de quilômetros de distância. E encalhar em terreno argiloso o Mar de Aral já havia nos ensinado que não é moleza sair. Por precaução voltamos, mas a investida valeu por termos dirigido ao lado de um paredão branco com lindas esculturas feitas pelas águas da chuva.
Está aí um indício de que o Manguistau está longe do resto do país – em praticamente todos os lugares estivemos sozinhos. Na pequena montanha Sherkala (307m), que é toda colorida, com erosões que formam cavernas e pequenos cânions, éramos só nós caminhando e isso dava um charme especial a natureza.
Mas claro, tivemos que dirigir bastante entre um lugar e outro, sendo que percorremos, numa volta em sentido anti-horário, cerca de 1.600km e a maioria das vezes em estradas vicinais que se ramificavam para todos os lados. No meio de toda aquela vastidão há um local específico que deve deixar qualquer geólogo louco. São as pedras esféricas do Vale das Bolas, ou Torysh, como são conhecidas no Cazaquistão. Trata-se de milhares de pedras arredondadas, de pequenas como um polegar até gigantescas maiores que nosso carro, redondas como uma bola. Nós já vimos pedras similares na Nova Zelândia (Moeraki Boulders) e mesmo estando elas separadas por meio mundo, sua formação aconteceu de maneira semelhante – sedimentos minerais se solidificaram ao redor de um núcleo, geralmente orgânico, como uma folha, um pedaço de concha ou fóssil, formando várias camadas e dessa forma, cresceram em diâmetro. O processo de formação de uma dessas pedras grandes que vimos pode levar centenas de milhões de anos.
A noite, enquanto acampávamos entre as pedras de Torysh, assamos uma saborosa costela de carneiro e os ossos jogamos fora para tratar os chacals. Eles caíram em nossa isca e talvez como forma de agradecimento, nos acordaram durante a noite fazendo serenata com seus uivos agudos e sincronizados. Foi muito legal! Na sequencia dessa viagem nós ouvimos muitas vezes os uivos dos chacals e segundo um homem do Azerbaijão a quem comentamos sobre o assunto, os chacals respondem frequentemente a dois sons: ao dos aviões que os sobrevoam e ao chamado das mesquitas que acontecem cinco vezes por dia. Na Geórgia, por exemplo, quando fizemos uma caminhada pelas montanhas vários chacals começaram a uivar ao mesmo tempo. Olhamos para cima e lá estava um avião cruzando o céu!
No limite oeste do Manguistau, as margens do Mar Cáspio, há mais um fenômeno geológico impressionante. Chama-se “Falling Earth” em inglês que em português traduziríamos “Terra Caindo”. Trata-se de uma parte da encosta que está desmoronando para dentro da terra. Infelizmente nossas fotos não são capazes de demonstrar a imponência daquele buraco, pois não havia nada que pudéssemos usar como referência de tamanho na foto, mas podemos afirmar que era grande, digno de cenário de filme de apocalipse.
Quem visita o Manguistau pode intercalar as belezas naturais com algumas obras interessantes do ser humano. Espalhadas por todo o estado há mesquitas subterrâneas, escavadas como cavernas que datam de até mil anos atrás. A maioria está em funcionamento até hoje e viraram pontos de peregrinação de fiéis de todo o país. Das duas que conhecemos na parte norte do estado, Shakpak Ata e Sultan Epe, acredita-se que a primeira possui poderes de cura, pois ali vivia o curandeiro Shakpak Ata e dizem que não havia no mundo doença que ele não pudesse curar. Centenas de anos se passaram e fiéis ainda visitam o local pois acreditam que o lugar tem poderes especiais. Já Sultan Epe era considerado o protetor dos velejadores e o seu mausoléu fica logo ao lado da mesquita-caverna Sultan Epe.
Aí veio Aktau, a capital do Manguistau, uma cidade que desenvolveu-se as margens do Mar Cáspio como cidade portuária. Sua importância se dá pela extração de petróleo e gás, recursos que a região tem em grande escala. Para nós foi mais um ponto de abastecimento e sem delongas partimos para a natureza novamente. Logo que deixamos a capital dirigimos por uma depressão na terra chamada Karagiye que tem seu ponto mais baixo a 132 metros abaixo do nível do mar (nós dirigimos até -103m). Como curiosidade, o Mar Cáspio, que não é um mar propriamente dito e sim um lago de águas salgadas, também tem sua linha d’água a 27 metros abaixo da linha dos oceanos.
Para acharmos esses lugares interessantes no Manguistau nós seguíamos pontos previamente registrados em nosso GPS, que foram sugeridos por amigos. Após a depressão de Karagiye, para chegar em um desses pontos, tivemos que sair da estrada principal e rumar ao sul e logo que começamos a descer por uma serra, ainda de longe, entendemos porque nos sugeriram ir para lá. Era um lugar maravilhoso, repleto de montanhas e cânions todos desenhados pela ação das chuvas e dos ventos. Lindo demais. Digno de ser explorado tanto por terra, como por ar.
Naquele dia, onde resolvemos acampar, montamos o paramotor para fazermos um voo de reconhecimento e algumas fotos aéreas. Era final de tarde e foi muito difícil decolar, pois não havia vento algum para ajudar a levantar a vela. Na terceira tentativa, depois de uma corrida de dezenas de metros, o paramotor levantou voo e nos levou para apreciar de cima um dos lugares mais incríveis que já estivemos. As fotos de um POST que já publicamos há algum tempo atrás comprovam o que falamos: CLIQUE AQUI para vê-lo!
Nos outros dias dirigimos e caminhamos em diversas partes desses cânions. E para nos deixar ainda mais maravilhados, uma daquelas noites coincidiu com o aparecimento da Super Lua, que, segundo astrólogos, foi a vez que a lua se aproximou mais da terra deste 1948. Além disso, durante o dia em nossas caminhadas, encontramos fósseis marinhos, resquícios petrificados que comprovam que o mar chegou até ali algum dia. Encontramos de conchas perfeitas até fósseis de ouriço do mar, algo que parece um pedaço de um casco de tartaruga e um dente de peixe. Dá para acreditar? Bom, como não somos especialistas no assunto, pelo menos foram as conclusões que chegamos na ocasião e claro, motivados por muita empolgação pelo achado.
Na parte do sul do Manguistau visitamos mais duas mesquitas subterrâneas, a Chopan Ata e a Beket Ata. São também lugares de peregrinação e há infraestrutura para as pessoas passarem a noite, bem como para fazerem refeições. Após a visita, sempre éramos convidados para tomar chá e comermos doces, mas em Beket Ata ficamos para a janta quando foi servido Bishbermak, um prato tradicional do Cazaquistão que compreende um macarrão largo, tipo massa de lasanha, com carne de cavalo ou cabra. Sentamo-nos todos no chão, homens separados das mulheres, ao redor de grandes bacias de alumínio com a comida que também foram postas sobre toalhas no chão. Todos comemos com as mãos, sem uso de talheres ou pratos. Como nessa oportunidade a carne usada foi carneiro, a cabeça, que é considerada uma das melhores partes do animal circulou entre os homens para cada um arrancar seu pedaço. No fim da refeição a água onde foi cozida a carne foi servida quente, segundo eles para ajudar na digestão. Tudo estava delicioso, mas não tivemos tempo de fotografar essa ceia, já que estávamos entretidos com a comida.
A caminho de Beyneu, cidade que já cruzamos no início do circuito do Manguistau, começamos a ver caminhões com muita neve sobre eles. Já estava em tempo de esfriar, mas definitivamente não esperávamos uma mudança de temperatura tão drástica. Das 13hs para as 14hs daquele dia a temperatura caiu de +10 para -4°C, não nos dando tempo para tomarmos as precauções para enfrentar o frio. A caixa d’água e a pia congelaram rapidamente, bem como tivemos problema com nosso aquecedor, quando um diesel de má qualidade congelou bloqueando a bomba. A noite fez -6,2, noutro dia -9,2 e alguns dias depois -13,4°C.
No norte do Mar Cáspio, na cidade Atyrau, ainda antes de sairmos do Cazaquistão, cruzamos o Rio Ural para mudar de continente. Parece estranho, mas é isso mesmo – o Rio Ural divide a Ásia da Europa, fazendo do Cazaquistão mais um país transcontinental. Acima da nascente deste rio, a separação está nos Montes Urais da Rússia. Ao sul de Atyrau, a divisa desce pelo Mar Cáspio, segue ao oeste pelas montanhas do Grande Cáucaso até o Mar Negro, de onde segue por água até o Mar Mediterrâneo pelo Estreito de Bósforo, que também divide ao meio a cidade de Istambul, na Turquia.
Já em terras europeias, cruzamos a fronteira para a Rússia e passamos alguns dias em Astrakhan. Lá conhecemos Vitaly, amigo do Konstantin, o russo que dirigiu conosco até a Latitude 70 na Rússia. Nossa grande amizade com Konstantin o motivou a dirigir 3.000km ida e volta pelas estradas nevadas russas só para passar um dia conosco em Astrakhan. Ele é uma pessoa muito especial para nós! Vitaly também foi muito hospitaleiro, nos ajudando com tudo o que foi preciso para que pudéssemos seguir viagem para o Cáucaso.
Por Astrakhan situar-se no delta do Rio Volga no Mar Cáspio, ela já foi um dos pontos de grande exploração de caviar, a iguaria de luxo que constitui-se das ovas do peixe esturjão. Nós estávamos loucos para experimenta-las, mas depois de vermos seu preço, tivemos que nos contentar com ovas de outros peixes, como do salmão, que também são gostosas, mas de acordo com as regras russas e iranianas, não são consideradas “caviar” verdadeiro. Na Europa, o quilo do caviar do esturjão pode passar dos 10 mil dólares. O preço tão alto não é só por ser uma iguaria, mas pelo esturjão estar em risco de extinção devido ao seu consumo excessivo. Segundo nosso amigo russo, o caviar preto vazia parte das refeições diárias dos locais há pouco tempo atrás. Não tê-lo comido nos fez sentirmo-nos melhor.
Nós já vimos coisas estranhas nas estradas desse mundo, mas nada parecido com o que estávamos por vivenciar ao sul de Astrakhan. Nosso GPS sugeriu seguirmos por uma rodovia que parecia ser a principal, mas que foi ficando cada vez menor, sem movimento, estrada de chão batido até chegarmos a conclusão que definitivamente ela não era a principal. Mas tudo bem, adoramos dirigir por esses lugares mais inóspitos e decidimos seguir em frente.
Estava divertido dirigir por lá, pois ventava bastante e haviam muitos estepiculsores, os capins rolantes ou plantas rodadoras. Tumbleweed, em inglês. São capins que crescem em formato arredondado e ao secarem, para proliferarem nos campos onde habitam, soltam-se de sua raiz e rolam com o vento, deixando suas sementes por onde passam. Em dia de bastante vento é incrível vê-los se deslocando, as vezes dezenas deles numa mesma direção. Paramos muitas vezes para contempla-los e a medida que avançávamos ao sul, mais capins rolavam pelos campos, alguns deles com quase um metro de diâmetro. Agora, o que não esperávamos de um simples capim é que seriam capazes de bloquear nosso caminho. O que acontece é que a estrada foi cortada em certos morros no campo e os capins caíam e se acumulavam nesse desnível, pois ali o vento não tinha mais força para carrega-los e de tantos, bloqueavam a passagem por completo. Só vendo para crer.
A estrada que no começo nos entreteve, passou a nos dar boas dores de cabeça. Em uma tentativa de sair da estrada para desviar de um amontoado de capins, nosso carro encavalou num barranco e foi muito difícil para tira-lo dali. Três homens do Daguestão (estado mais ao sul) ofereceram ajuda, mas como nem com eles e nem cavando muito por debaixo do chassis nos livramos da encrenca, tivemos que ser rebocados por um jipe UAZ 4×4 de alguns soldados que patrulhavam a região. Que sufoco. A estrada continuou dessa forma por mais dezenas de quilômetros, fazendo-nos desviar dos capins pelo campo esburacado ou encara-los de frente sem termos visibilidade de onde dirigíamos. Que experiência!!!
Por final entramos numa região de instabilidade política na Rússia, nos estados Daguestão, Chechênia, Inguchétia e Ossétia do Norte. Motivados por traçados de fronteiras mau estabelecidas na época do ditador Stalin e por diferenças em culturas e religiões, essas terras, junto com outras que se situam no outro lado do Cáucaso, nos países Geórgia, Azerbaijão e Armênia, ainda lutam por independência. Um exemplo dessa instabilidade escrevemos em nosso POST que fala um pouco sobre a recente e sangrenta Guerra da Chechênia. Para vê-lo clique AQUI.
Apesar de todo o sague derramado, a Chechênia foi reconstruída e a capital Grozny ficou nova outra vez. E mais, pelo alto investimento russo neste estado, percebemos que todo ele está mais bem cuidado do que os outros estados russos que conhecemos, mas mesmo assim a paz ainda não está cem por cento negociada.
Depois de uma planície sem fim, surgiram as Montanhas do Cáucaso e bastava cruzá-las para chegarmos aos nossos próximos destinos, a Geórgia, Azerbaijão e Armênia.
Veja mais sobre esse trajeto nos posts a seguir:
Itinerário percorrido
Fotos