Muitos russos nos perguntaram o que estávamos fazendo num dos lugares mais frios do mundo, na estação mais fria do ano. A resposta não foi difícil: dissemos que queríamos experimentar o frio extremo pelo menos uma vez em nossas vidas. Mas quem tem que responder são eles, porque cargas d´água moram nesse lugar congelante?
Estamos falando de Oymyakon, uma região na República de Sakha – Rússia, que é considerada o Polo do Frio, ou melhor, a região mais fria do mundo permanentemente habitada. Em 1924 registrou-se −71,2 °C, dá para acreditar? Somente a Antártica marcou oficialmente temperaturas mais baixas. Na vila de Oymyakon, em seu curto verão, a temperatura pode chegar a 35 °C positivos, entendendo-se que, junto as cidades russas Verkhoyansk e Yakutsk, são as únicas cidades no mundo onde a amplitude de temperatura pode variar mais que 100 °C.
Oymyakon se situa num vale (750m ao nível do mar) que concentra o frio que desce das montanhas ao redor. É engraçado, pois sempre relacionamos o frio à altitude e lá é justamente o contrário. Há uma outra cidade na região chamada Ust-Nera, que nos indicaram dormir nas montanhas. Se descêssemos para o vale, onde fica a cidade, passaríamos muito mais frio. Dito e feito!
Mas voltando a Oymyakon, quando chegávamos perto, a cada quilômetro os números em nosso termômetro só baixavam. De –40 foi para –45, –47, –49, –49,9 °C e de repente LL,L, que traduzimos como “the Lowest Lowest, Lowest”, o limite de nosso termômetro. Só sabíamos que estávamos abaixo de -50 °C.
Tomtor, que faz parte da região de Oymyakon, já estava escura quando chegamos. Não havia nenhuma alma viva caminhando na cidade, nem ao menos um cachorro. Estacionamos o Lobo ao lado de uma construção e encaramos nossa primeira noite no extremo frio, dormindo dentro do carro!!! Ainda bem que nos preparamos para isso. (Aliás, num POST futuro, queremos detalhar as modificações que nosso carro sofreu para o frio.) Outro dia e noite passamos na vila de Oymyakon, que fica a 38 km de Tomtor e lá foi mais um banho de frio tremendo. Dirigimos pela pequena vila, fizemos fotos, algumas brincadeiras no frio, como aquela de jogar água fervente ao alto para que se evapore, mas a maior parte do tempo nos abrigamos dentro do carro para não congelarmos. O motor funcionou 24h sem parar, caso contrário, nós não o ligaríamos mais. Brincam os locais que se desligado, terá que esperar a próxima primavera para faze-lo funcionar novamente.
Bom, mas nossa aventura estava apenas começando. Após sobrevivermos a segunda noite, quando dirigíamos de Oymyakon para Tomtor, num lugar extremamente remoto, o carro começou a falhar. Tuhf, tuhf, tuhf e morreu! O coração bateu forte, pois apenas o silêncio da natureza é o que menos queríamos escutar naquele momento. E foi aquela correria. Nós costumamos dizer que diante de um problema mecânico, em uma viagem longa como a nossa, o tempo é nosso aliado, pois ele nos deixa mais calmos para melhor lidarmos com o problema. Mas ali é diferente. Detalhe: de acordo com a estação meteorológica de Oymyakon, nessa manhã registrou-se –55 °C, igual a manhã anterior e em –55 °C a temperatura interna do carro sem aquecimento iguala a externa em pouco tempo.
O primeiro pensamento foi que ficamos sem diesel, mas descobrirmos que quem causou o problema fomos nós mesmos na noite anterior. Como o motor deve ficar ligado 100% do tempo, o seu consumo é alto, então transferimos diesel do tanque reserva para o principal com o intuito de não termos uma pane seca. Mas o diesel do taque reserva foi abastecido em uma região não tão fria da Rússia, onde supostamente usa-se diesel de inverno e não polar. O diesel de inverno, que possui características melhores para o frio que um diesel comum, fica gelatinoso nessa temperatura extrema entupindo o filtro de diesel e aí já era. Com o motor parado o problema cresce como uma bola de neve, pois vai perder calor muito rapidamente e aí não será só o diesel congelado, mas todo o carro. De acordo com a Lei de Murphy, as baterias no frio também perdem potência.
Corre daqui, congela as mãos ali, pega a caixa de ferramentas, joga aditivo no diesel, experimenta bombar diesel manualmente e as ferramentas começam a ficar jogadas por todos os lados. Até as portas ficaram abertas e por ironia do destino, os trincos congelaram e não fechavam mais. Ao nosso redor somente aquele terrível silêncio da natureza. Foi então que depois de uns 15 minutos abrimos os bicos injetores, assim como se faz para sangrá-los quando se tem uma pane seca em motor a diesel e por um milagre, o carro voltou a funcionar, mas só para chegarmos de volta em Tomtor onde ele parou de vez. Se analisarmos essa situação pelo lado negativo, podemos passar horas nos lamentando, mas se enxergarmos este fato positivamente, temos que agradecer ao bom Deus por ter-nos dado a chance do carro funcionar pelo menos para rodarmos aqueles trinta e poucos quilômetros do meio do nada até uma cidadezinha com maior estrutura. Não que lá não tivemos muito trabalho e que o frio era menor, mas pudemos contar com a ajuda dos locais.
Tentamos reanimar o carro de todos os jeitos (chegamos até a trocar o filtro de diesel), mas nem um sinal. O rebocamos para tentar ligá-lo no tranco, mas nada também. Naquele ponto os óleos do diferencial e caixa já haviam endurecido e os pedais de freio e embreagem literalmente travaram. A direção estava tão dura que não conseguíamos fazer curvas. Não nos restou outra solução do que sermos rebocados pelo caminhão do Corpo de Bombeiros da cidade até uma garagem aquecida para deixarmos o Lobo esquentar lentamente até tudo derreter. Voltamos para buscá-lo somente no outro dia.
Quanto a nós, fomos abrigados na Pousada da Susanna, a única da cidade. Tomamos um bom banho de caneca e bacia, coisa rara nesta fase fria de nossa viagem e passamos uma noite bem quentinha. Diz o ditado: “São males que vem para o bem!” Quando iríamos ter a chance de experimentarmos fígado crú congelado de cavalo se isso tudo não tivesse acontecido?